Neuza era uma
mulher de menos de 40 anos, mas que aparentava ter mais de 50. Para completar o
quadro, cardiopata (talvez isso tenha contribuído para produzir essa aparência
sofrida) e hipertensa. Na época em que foi presa, estava grávida de sete meses.
Seu carro
velho, uma Belina, apresentou um defeito e ela a levou a uma oficina mecânica
nas proximidades do “mercadão”, uma autêntica “boca-de-porco”. O carro ficou
pronto, ela pagou o preço, retirou-o, mas o defeito persistiu. Levou-o a outra
oficina mecânica; examinado, constatou-se que não havia sido feito reparo
nenhum. Retornou à oficina que simulou ter feito o serviço, mas recusaram-se a
devolver-lhe o dinheiro.
Ajuizou uma
reclamação no Juizado Informal de Conciliação (era assim que se chamava então);
citado, o dono da oficina não compareceu e, julgado revel, foi condenado a
devolver a quantia indevidamente cobrada e recebida. Voltou à oficina, desta
vez com cópia da sentença condenatória. O dono da oficina tinha sido preso,
acusado de extorsão. O advogado do dono da oficina foi chamado. Combinaram que
ele iria ao presídio conversar e que Neuza seria avisada.
Certo dia,
Neuza foi chamada à oficina, no período da tarde, e, estando do lado de fora,
foi surpreendida com a chegada de uma equipe de policiais da DISE, que a
prenderam em flagrante sob a acusação de tráfico de cocaína: submetida a uma
busca pessoal (“revista”), teriam sido encontrados em seu poder vários
“papelotes” de cocaína. O inquérito foi distribuído à 1ª Vara Criminal de
Campinas.
Uma tarde
esteve na PAJ (que naquela época localizava-se na Rua Benjamin Constant, 1.214,
1°andar) uma estagiária (por coincidência, de quem eu tinha sido professor) da
assistência jurídica da Faculdade de Direito da PUCCamp, que também presta
serviços jurídicos a pessoas carentes, procurando informação a respeito de quem
seria incumbido de defender a Neuza. Por coincidência, caberia a mim. A razão
da procura foi esta: havia estado na AJ da Faculdade de Direito o companheiro
de Neuza, buscando defensor para ela e ali não era feito esse tipo de defesa.
Interessei-me prontamente.
Examinei o
processo. Constatei que ele já houvera dado à luz: estando encarcerada, havia
sido levada ao CAISM da Unicamp para dar à luz. Foi requerida ao juiz prisão
domiciliar, prontamente concedida.
Os fatos não se
conectavam: uma mulher em adiantado estado de gravidez, com problemas cardíacos
e hipertensa, não atravessaria a cidade para traficar entorpecente defronte uma
oficina. Isso feria a lógica. Decidi ir conhecer o local. Não o encontrava. Ele
ficava na rua Falcão Filho, que era seccionada pelo Viaduto Penido Burnier:
aparentemente, a rua Falcão Filho terminava ali. Procurei no mapa: a rua
continuava após o viaduto. Fui ao local num domingo, com máquina fotográfica,
para retratá-lo. Parei o carro, desci, minha mulher assumiu o volante e comecei
a fazer as fotos. Abriu-se, de repente, o portão. Surgiu um homem com um cão
enorme e gritou: “moço, o que você está fazendo?. Literalmente, pulei no carro
e disse para minha mulher: “toca”. Ela arrancou à toda. As fotos já estavam
feitas.
Os policiais
que efetuaram a prisão foram arrolados como testemunhas, em número de três.
Ouvidos, relataram a mesma história de sempre: denúncia[1]
anônima[2]
dizia que uma mulher grávida estava traficando no local; a denúncia fora
registrada na DISE (não havia ainda o disque-denúncia).
Arrolei algumas
testemunhas de defesa, dentre as quais o advogado do dono da oficina; requeri
ao juiz que requisitasse cópia do registro da denúncia na DISE; pedi que fosse
ouvido mais um dos policiais, um que compôs a equipe mas não apareceu no auto
de flagrante. O advogado inesperadamente viajou à Itália e não pôde ser ouvido;
o policial foi intimado duas vezes e não compareceu, tendo sido preciso que o
juiz ameaçasse processa-lo por desobediência a fim de que ele comparecesse; o
registro da ocorrência era de muito tempo antes do fato e não tão recente, como
tentaram fazer crer os policiais. Apresentei cópia da sentença do JIC que
condenava o dono da oficina, defronte a qual Neuza fora presa, a restituir o
que havia cobrado e recebido indevidamente; pedi da juntada aos autos das fotos
que fizera.
Tudo isso convenceu a juíza substituta, uma
carioca, e Neuza foi absolvida. Não se conteve de alegria. Toda vez que
conversava comigo chorava copiosamente. O Ministério Público, inconformado,
recorreu.
Recebi, logo
após proferida a sentença absolutória, um telefonema do pessoal do cartório:
Neuza havia deixado três presentes ali, para mim. Nem imaginei o que poderia
ser,pois ela era pobre. Surpresa: eram três jacas produzidas em seu quintal.
Não gosto de jaca, nem do cheiro. É trauma: passando férias na fazenda de um
parente, ouvia barulhos fortes no quintal; pensava que fosse a mula sem cabeça
colidindo com o paiol ou a tulha. Eram as jacas, caindo de maduras. Das três,
deixei duas com o pessoal do cartório, e, para não desaponta-la levei uma para
minha casa; dei-a à empregada.
Antes que o
recurso fosse julgado, o marido de Neuza esteve na PAJ e contou-me que ela
havia sido morta, vítima de um balaço. Contou-me que haviam comprado um bar na
periferia: dois fregueses brigaram, um sacou uma arma de fogo, atirou no outro,
errou o alvo, acertou Neuza[3]. O
marido trazia o atestado de óbito.
Eu tinha duas
opções: apresentar, de pronto, o atestado de óbito e com isso seria extinta a
punibilidade pela morte (Código Penal, artigo 107, inciso I – “mors onmia
solvit”) ou aguardar o julgamento do recurso. Julgado o recurso do Ministério
Público, se fosse modificada a sentença, com a consequente condenação de Neuza,
eu requereria a extinção da punibilidade pela morte. Optei pela segunda.
O recurso foi
julgado e lhe foi negado provimento: a justiça terrena reconheceu que Neuza não
merecia ser condenada.
Rasguei o
atestado de óbito em inúmeros pedaços.
[1] . Disse em 1764 Beccaria:
“aquele que suspeita que um seu concidadão é um delator, vê logo nele um
inimigo”. Durante o tempo em que atuei na PAJ – 24 anos – vi muitas ocorrências
falsas relatadas ao “disque denúncia”, algumas com nítida aparência de vingança.
No “caso Toninho”, por exemplo, várias pessoas ilustres foram delatadas nesse
serviço.
[2] . Sabe-se que quase nunca
a denúncia é anônima; os policiais quase sempre sabem quem delata o criminoso.
[3] . Em Direito Penal, é o
erro na execução ou “aberratio ictus”
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