A
festa de confraternização de final de ano daquele renomado curso de Campinas
seria realizada num hotel na cidade de Jaguariúna. Prometia ser um sucesso.
No
vestiário, que conjugava os banheiros masculinos, havia uma sauna; como ela
estava apresentando defeito, não foi ligada e não poderia ser usada.
Depois
de algum tempo de transcurso da festa, algum desavisado ou ousado ligou-a e
alguém percebeu que ela estava dando choque em quem se tocasse nela. O teor
alcoólico no sangue preponderou e começaram as brincadeiras (ditas de “mau
gosto”): pessoas eram empurradas contra a parede de metal da sauna e ao
encostarem levavam um pequeno choque. Até momento em que um patrulheiro foi
empurrado contra a sauna; como ele estava descalço e o chão do local àquela
altura dos acontecimentos já estava muito molhado, a combinação foi fatal: o
choque jogou-o desmaiado no chão. Foi socorrido e levado ao pronto-socorro, mas
em vão: ele morreu devido ao choque.
Foi
instaurado o inquérito policial e o funcionário que havia empurrado o
patrulheiro e que, portanto, colocava-se no nexo causal da produção da morte,
foi denunciado por homicídio doloso. Em outras palavras: ele teria querido
provocar a morte da vítima.
Fui
contratado pelo curso para defender o funcionário. O processo transcorreu sem
percalços, e a minha tese foi evidentemente a de total ausência de intenção. O
fato foi desclassificado para lesão corporal seguida de morte (antigamente
chamada de “homicídio doloso” ou “homicídio preterintencional”[1]),
artigo 129, parágrafo 3°, do Código Penal, cuja pena cominada é de 4 a 12 anos
de reclusão. Tendo em vista o teor do artigo em questão (“se resulta morte e as
circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o
risco de produzi-lo”) e como a doutrina o interpreta, afirmando que “deve ser
ao menos previsível o resultado”, e que como a morte era imprevisível, já que
algumas pessoas haviam tomado choque sem qualquer dano, pugnei pela absolvição,
mas foi em vão: ele foi condenado pela lesão corporal seguida de morte, sendo
imposta a pena mínima, de 4 anos de reclusão, a ser cumprida integralmente em
regime aberto (prisão albergue). Essa pena, porém, foi substituída por 4 anos
de prestação de serviço à comunidade, consistente em doar uma cesta básica por
mês de condenação – 48 meses – a uma instituição de caridade.
A
substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito foi uma
atitude corajosa da juíza que o condenou, pois há profunda divergência na
doutrina acerca da possibilidade de substituição em razão de aparente proibição
legal, pois a pena restritiva de direito não pode substituir a privativa de
liberdade quando o crime for cometido com emprego de violência ou grave ameaça
e quase todos os autores de Direito Penal entendem que a lesão corporal é crime
cometido com violência (exceto Julio Fabbrini Mirabete, para quem a
substituição é possível).
O
réu foi intimado da sentença e nos reunimos, oportunidade em que expliquei-lhe
que o Ministério Público estava satisfeito com o desfecho processual mas que
cabia ainda recurso da defesa ao Tribunal de Justiça de São Paulo, e que, em
grau de apelação, poderiam ser apresentados os mesmos argumentos, especialmente
o de que a morte do patrulheiro era imprevisível, não caracterizando assim
sequer o crime culposo. Esclareci ainda que a sentença contra a qual há recurso
apenas do réu não pode ser agravada. Ou seja: na pior das hipóteses, a pena
continuaria a mesma.
Para
minha surpresa, ele disse que não queria recorrer: afirmou que a condenação
daria a ele a oportunidade de praticar a caridade e isso era algo que ele
estava mesmo precisando fazer.
[1] . Diz
unanimemente a doutrina que nessa espécie delituosa há dolo no antecedente e
culpa no conseqüente: ao atacar a pessoa, o ofensor quer lesar-lhe a
integridade corporal, porém, a morte não está no âmbito de sua vontade.
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