Depois dessa breve introdução, a “maioridade
penal” é um termo cunhado pela mídia, pois no Código Penal a redação é esta:
“os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos
às normas estabelecidas na legislação especial” (artigo 27). E a rubrica acima
do artigo está assim redigida: “menores de dezoito anos”. Esta é a
palavra-chave para o entendimento do tema: inimputável.
A imputabilidade, nos termos atuais
da doutrina, é (para alguns) componente da culpabilidade
ou (para outros) seu pressuposto. E por falar em culpabilidade, para
facilitar mais ainda a exposição e o entendimento, adotarei uma visão (hoje em
franco desuso) tripartida do delito: tipicidade, ilicitude (ou, como preferem
ainda teimosamente alguns doutrinadores brasileiro, antijuridicidade) e
culpabilidade. Na tipicidade, tem-se a exata relação de conformidade entre o
fato e o artigo da lei penal; na ilicitude, a relação de contrariedade ente o
fato típico e a lei penal. E, finalmente, na culpabilidade analisa-se o autor
do fato – ou sujeito ativo, melhor dizendo – para se concluir se ele tem
condições de ter a sua conduta reprovada. Culpabilidade é reprovabilidade,
proclama a doutrina penal brasileira unanimemente. A culpabilidade tem como componentes
a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de
conduta diversa (da que foi praticada, óbvio).
O
tema “maioridade penal” tem a sua ubicação, portanto, na culpabilidade, e, mais
especificamente, na imputabilidade. O Código Penal não tem um conceito sobre a
imputabilidade (e nem deveria ter): contrariamente, ele define quem são os inimputáveis, conforme o artigo 26,
“caput”: “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se conforme
esse entendimento”. A rubrica do artigo é esta: “inimputáveis”. Portanto,
imputável é a pessoa que não tem doença mental nem desenvolvimento mental
incompleto ou retardado e no momento da ação ou omissão consegue entender o
caráter criminoso do fato (que está praticando) ou determinar-se conforme esse
entendimento. Sobre a imputabilidade, há três sistemas que o definem:
biológico, psicológico e biopsicológico. Pelo biológico, o portador de doença
mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado é sempre inimputável; pelo
segundo, o psicológico pelo qual “se verificam apenas as condições psíquicas do
autor no momento do fato, afastada qualquer preocupação a respeito da
existência ou não de doença mental ou distúrbio psíquico patológico”, conforme
as palavras de Julio Fabbrini Mirabete[1].
O terceiro é uma mixagem dos dois anteriores. O Código Penal adotou o misto:
além de ser portador da – por assim dizer – “anomalia mental”, é necessário que
esta tenha, no momento da ação ou omissão, privado o sujeito ativo da
capacidade de entendimento ou de autodeterminação.
Por
uma presunção legal, pois não há regra escrita a este respeito, a legislação
penal brasileira vem há tempos adotando um critério dito biológico quanto à
idade de entendimento e autodeterminação: 18 anos. Já foi menor do que essa e a
última tentativa de diminui-la ocorreu com o Código Penal de 1969, em que
excepcionalmente a “maioridade penal” era atingida aos 16 anos (essa lei –
decreto-lei, aliás – ficou 8 anos em período de “vacatio legis”, sendo revogada
sem ter entrado em vigor). Ou seja: se não tiver 18 anos no dia do fato ficará
fora do âmbito de aplicação da lei penal.
Vem
a caráter, antes de prosseguir, lançar alguma luz sobre a palavra
imputabilidade, não em termos estritamente penais, mas sim filosóficos. Miguel
Reale assim se manifesta: “em que sentido a norma é algo que se põe no plano do
dever ser? O princípio que governa o
mundo do ser é, como já dissemos, o
princípio de causalidade, de tal
maneira que tudo o que acontece pressupõe uma causa; ao contrário, no mundo do dever ser, o princípio dominante é o da
imputabilidade, em virtude da qual se
atribuiu uma consequência em razão da prática de determinado ato”[2].
É isso: imputar, segundo o dicionário Houaiss, é “atribuir (a alguém) a
reponsabilidade de (algo censurável)”.
Não
há uma idade em que, em todas as partes do mundo, as pessoas adquiram
capacidade de entendimento e de autodeterminação em matéria jurídico-penal
(quero relembrar que ao Direito Penal cabe a tarefa de proteger os bens
[valores] mais importantes da sociedade). Mirabete[3]
apresenta uma resenha interessante acerca da maioridade penal em alguns países:
18 anos – Dinamarca, Áustria, França, Finlândia, Peru, Venezuela e outros; 17
anos – Grécia, Nova Zelândia e outros; 16 anos – Argentina, Espanha, Bélgica e
outros; 15 anos – Egito, Paraguai e outros; 14 anos – Alemanha e Haiti; 10 anos
– Inglaterra. Como é que uma pessoa nascida na Espanha (ou apenas ali moradora)
“amadureça” em matéria penal aos 16 anos? E o que dizer da Argentina (mesma
idade). O critério, portanto, não é o biológico: é político.
Outro
aspecto a ser exposto é o da finalidade da pena. A discussão sobre o tema é
interminável e nos estreitos limites deste texto serão apenas referidas. A pena
não tem nenhuma finalidade, é somente retributiva: pune-se porque pecou
(“punitur quia peccatum est”) – Kant e Hegel são os expoentes desta corrente; a
pena tem uma finalidade preventiva: pune-se para que não peque (mais, ou de
novo, não reincida – a pessoa condenada somente será desestimulada de cometer
novas infrações se for reeducada) (“punitur ne peccetur”); esta prevenção
divide-se em especial (atua sobre o sujeito ativo) – Platão, Sêneca, Protágoras
são maiores representantes); e geral (atua sobre a comunidade, desencorajando-o
– Feuerbach foi seu formulador). Fala-se, ainda, numa teoria “mista”: pune-se
porque pecou e para que não peque (“punitur quia peccatum est et ne peccetur”).
Claus Roxin cunhou “a teoria unificadora preventiva” da pena. São estas as suas
palavras: “o ponto de partida de toda teoria hoje defensável deve basear-se no
entendimento de que o fim da pena somente pode ser de tipo preventivo. Posto
que as normas penais somente estão justificadas quando tendem à proteção da
liberdade individual e a uma ordem social que está a seu serviço, também a pena
concreta somente pode buscar isto, é dizer, um fim preventivo do delito[4]”.
O
Código Penal adota, por assim dizer, uma finalidade mista da pena: retributiva
e preventiva. Claramente isso está escrito no artigo 59 que se constitui na
primeira fase da aplicação da pena em o juiz deve escolher uma “conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. Prevenção do
crime: está aqui exposta a finalidade preventiva da pena. Somente se atinge
essa prevenção, em sua vertente “especial” quando se reeduca a pessoa de modo a
convencê-la a não mais delinquir. Roxin afirma que o Estado não pode ter a
pretensão de reeducar adultos: se estes quiserem, por assim dizer,
“reformar-se” (ou seja: reeducar-se), tudo bem; caso não queiram, cumprindo a
função preventiva geral a pena terá atingido a sua finalidade.
Portanto,
não se trata apenas de à pessoa poder ser atribuída a consequência de um fato
(delituoso) por ela ter capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou
de determinar-se conforme esse entendimento; é, ainda, a pena atingir a sua
finalidade preventiva. Os dois temas estão totalmente entrelaçados, ficando até
difícil separa-los: são quase siameses.
Conjugando
as ideias: uma pessoa no Brasil (lembrando que a grande “clientela” do sistema
punitivo é composta de pessoas pobres e com pouca alfabetização) tem qual
educação antes dos 18 anos? Para
radicalizar: ela é ensinada que DEVE respeitar os valores? Quando se vê
políticos “montando esquemas” para desvio de dinheiro público, inclusive
dinheiro destinado a socorrer pessoas vítimas de catástrofes; pessoas invadindo
postos de saúde para subtrair equipamentos de informática utilizados no
atendimento da população; pessoas destruindo bens públicos, é de se perguntar:
elas foram educadas?
Até
os 18 anos, a pessoa deve frequentar “os bancos escolares” (como se dizia em
antanho) e não ser penalmente punida. Aliás, a pessoa deveria estudar até
depois dos 18, obtendo uma graduação. Sim, elas devem ser preparadas para a
vida em sociedade, e, caso não aceitem esse preparo, sejam responsabilizadas
pelos desrespeitos aos valores que cometerem.
A
doutrina de forma unânime afirma que o Direito Penal deve ser a “ultima ratio”,
ou seja, utilizado como a última alternativa para a proteção dos bens jurídicos
e o princípio da intervenção mínima atua no mesmo sentido. Assim, rebaixar
maioridade penal significa que esse ramo do Direito, o mais drástico, deve
substituir os pais, os professores, os clubes, a religião, o que é
inadmissível. Antes de punir, é preciso educar. Somente assim, a punição, se for necessária, poderá
ter uma finalidade reeducativa.
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