Pular para o conteúdo principal

Condenem o mais feio


              O édito de Valério determinava que entre dois supostos culpados, deveria ser condenado o mais feio. Ele tem algumas variações: na dúvida condena-se o mais feio; na dúvida pune-se o mais feio, mas uma constante: o feio é que deveria ser punido. Talvez por sua feiura?
            “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”, proclamou certa ocasião o “poetinha” - como ele gostava de ser chamado - Vinicius de Moraes. Outro espirituoso, ao ditado “beleza não vai à mesa”, respondeu: “mas eu não como no chão”.
            A feiura sempre foi feia – desculpem a redundância. O livro “História da feiúra” (assim no original – é anterior à reforma ortográfica), organizado por Umberto Eco, diz em sua introdução que “ao longo dos séculos, filósofos e artistas sempre elaboraram definições do belo; graças a esses testemunhos é possível, portanto, reconstruir uma história das ideias estéticas através dos tempos. Já com o feio, foi diferente. Na maioria das vezes, o feio era definido em oposição ao belo e quase não se encontram tratados mais extensos consagrados ao tema, mas apenas menções parentéticas e marginais”. As fotos que ilustram o livro, todas – ou quase – de quadros e esculturas são de tirar o fôlego de feias.
            Os estudiosos que abordam o édito de Valério sempre fazem uma conexão entre ele e as pesquisas do médico nascido em Verona e fundador da Escola Positiva, Cesare Lombroso, publicadas em sua famosa obra “O homem delinquente”. As ilustrações da capa da edição brasileira são de assustar, pois são somente de pessoas monstruosas de feias. Numa certa época, costumava-se usar a expressão "tipo lombrosiano" para se referir a uma pessoa com aparência de delinquente. De vez em quando as ideias expostas no livro são ressuscitadas por algumas leis.
            Todas essas ideias me vieram à mente quando participei de uma audiência na 3ª Vara Criminal da comarca de Campinas: o crime imputado ao réu era de porte de entorpecente. Como sempre acontecia – e ainda acontece – as únicas testemunhas de acusação eram os dois policiais militares que haviam efetuado a prisão. Segundo constava, os milicianos estavam “em patrulhamento de rotina” quando viram dois rapazes em “atitude suspeita”. Ao avistarem a viatura, os dois “suspeitos” saíram correndo, cada um em uma direção. Os milicianos foram em perseguição de um deles e – eureka -: este portava a droga.
            Ao me ser dada a oportunidade de perguntar, não me contive e indaguei qual havia sido o critério escolhido para perseguir aquele e não o outro e a resposta trouxe à mente o édito de Valério: eles escolheram o mais feio. E acertaram “na mosca”.
           








Comentários

  1. O feio por não poder contar com uma aparência agradável acaba desenvolvendo outras habilidades que o fazem mais atraentes. Diante disso, devemos concluir que feio não pode ser ladrão! Rs....

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante