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O Direito Penal e os animais


  
                        Nos presentes dias, os animais são tratados quase como humanos – em algumas hipóteses, até melhor. Pululam as lojas especializadas em artigos para mascotes, onde de tudo pode ser encontrado para satisfazê-los (e aos seus proprietários, evidentemente). No projeto do Código Penal que ora tramita no Senado Federal, a pena para quem omitir socorro a um animal é mais grave do que a prevista para a omissão de socorro de pessoa (humana). Claramente, essa opção viola o princípio da proporcionalidade das penas, mas é possível que tal desvio seja corrigido – afinal, o projeto está em tramitação, podendo (e devendo, em alguns casos, como o presente), sofrer alterações por meio de emendas.
                        Porém, nem sempre foi assim. Os animais – por alguns chamados de “bestas” (este nome também servia para designar o demônio) – durante largo tempo não apenas foram tratados como irracionais que apenas serviam ao homem, mas, em alguns casos, eram julgados por juízes e tribunais como sujeitos ativos de delitos. Luigi Ferrajoli, na sua clássica obra “Direito e razão” (“Diritto e raggione”), relata um caso em que um galo, num estado norte-americano, foi condenado à morte; não descreve o crime (talvez não tenha cantado e despertado o seu dono na hora certa? Não “deu conta” do plantel de galinhas a seu cargo?), nem a forma de execução (talvez na panela...); Mirabete (“Manual de Direito Penal”, volume 1), comenta o caso de uma porca, que recentemente havia parido uma ninhada de leitõezinhos, que foi julgada e condenada, sendo imposta a pena de morte. Os leitõezinhos foram, por assim dizer, “anistiados” (a pena não passou da “pessoa” do condenado – e naquela época passava...). A forma de morte não está descrita no texto. Em outra obra editada no Brasil, escrita em homenagem ao ministro Nelson Hungria, há o relato de umas formigas que estavam destruindo uma igreja no Maranhão e foram processadas (fico imaginando o trabalho que teve o oficial de justiça para citar todas – talvez tenham optado pela citação edital... [mas o autor do artigo não esclarece isso...]).
                        De outro lado, nas Ordenações (do Reino) Filipinas, Livro V, que descrevia os crimes e cominava as penas, punia o homem que fizesse sexo com “alimárias”[1], a famosa zoofilia: qualquer homem, ou mulher, que carnalmente tiver ajuntamento com alguma alimária, seja queimado e feito em pó” (Título XIII, “dos que commettem pecado de sodomia, e com alimárias”). Ajuntamento carnal era o eufeminsmo para - hoje - fazer amor, transar e outras expressões chulas.
                        Quanta alteração com o passar do tempo: de sujeito ativo de delito e portanto, punível, passou quase a ser sujeito de direitos, com punição maior do que aquela reservada à pessoa humana; hoje, quem quiser ter “ajuntamento carnal com uma alimária”, como na música (maravilhosa) “Geni e o zepelim”, de Chico Buarque ("E a deitar com homem tão nobre/Tão cheirando a brilho e a cobre/Preferia amar com os bichos"), poderá fazê-lo sem susto (e com prazer, claro...), pois é um indiferente penal. Porém, não poderá fazê-lo em público, pois cometerá o crime de ato obsceno...




[1] . Qualquer animal, especialmente quadrúpede; besta de carga (conforme o dicionário Houaiss).

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