A
música não era considerada uma forma de arte pelo personagem do livro mais
recente de Umberto Eco, “O cemitério de Praga”. É que, ao contrário da pintura,
em que a pessoa pode admira-la sem incomodar ninguém, o apreciador da música,
ao admira-la, faz com que o som se propague incomodando os que não a querem
apreciar. Nos tempos atuais ela, a música, tem atingido um grau de incômodo
como nunca se viu.
Esse
incômodo é concretizado por automóveis dotados de potentes auto-falantes que
fazem com que o som, na maior parte das vezes de gosto duvidoso, num volume
ensurdecedor, se espalhe pelo espaço, invadindo casas e perturbando os
moradores, que, tal qual retrata o personagem de Umberto Eco, não querem ouvir
a “obra” (no segundo sentido) que está sendo “executada” (aqui também no
segundo sentido).
Mas
não são apenas os “carros de som” que têm gerado transtornos à população: os
aparelhos de telefonia celular, esses que permitem gravar músicas ou
simplesmente sintonizar emissoras de rádio, também têm servido de motivo de
irritação, pois os seus proprietários, amantes de música de gosto duvidoso,
querem ouvir as gravações no interior de ônibus num volume muito alto. Lembrando que uma grande invenção, o fone de ouvido, veio para "privatizar" o som: apenas o proprietário da "engenhoca" poderia auscultar o som. Mas nem isso...
Todas
essas condutas denotam falta de respeito – por que não dizer, falta de educação
– ao próximo, o que tem levado o Estado a elaborar leis na tentativa – muitas vezes
vã – de coibir esses comportamentos mal educados. E parece que o problema não é
de hoje – apenas tem piorado. Assim é que nos pacatos idos de 1941, mais precisamente
no dia 3 de outubro, com entrada em vigor prevista para o dia 1° de janeiro do
ano seguinte, veio à luz o decreto-lei n° 3.688, a “lei das contravenções
penais”. O capítulo IV da Parte Especial trata “das contravenções referentes à
paz pública” e o seu artigo 42, cujo “nomen juris” é “perturbação do trabalho
ou do sossego alheios”, tem o seguinte teor: “perturbar alguém, o trabalho ou o
sossego alheios: I – com gritaria ou algazarra; II – exercendo profissão
incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; III – abusando de
instrumentos sonoros ou sinais acústicos; IV provocando ou não procurando
impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda”, cuja pena é de prisão
simples, de 15 dias a 3 meses, ou multa.
Mais
tarde, mais de meio século depois, a lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997,
que instituiu o Código Nacional de Trânsito, trouxe como uma das infrações a
prevista no artigo 228, considerada grave, punida com multa e com a medida
administrativa de retenção do veículo para regularização, assim: “usar no
veículo equipamento com som em volume ou frequência que não sejam autorizados
pelo CONTRAN”. A resolução n° 204, de 20 de outubro de 2006, que regulamentou o
artigo em questão, estabeleceu o volume em 80 decibéis dB(A), medidos a 7
metros do veículo.
E
recentemente o município de São Paulo vem de aprovar lei coibindo o alto volume
produzido por veículos e lojas, prometendo punir “rigorosamente” quem estiver
agindo em desacordo com a lei.
Como
se vê, há leis regendo o assunto – “habemus legem”. E qual a razão de continuar
o desrespeito, principalmente pelos veículos automotores? Antes de responder,
precisa ficar registrado que a música executada por esses veículos é de gosto, conforme já dito,
no mínimo duvidoso, se bem que “sobre gustos no hay nada escrito”. Porém, não
se ouve música dos Beatles, Adele, Chopin, Bach e outros mais, o que faz que
com que o pensamento se volte ao personagem de Umberto Eco. Pois bem, o
desrespeito prossegue porque não há a menor vontade em fazer valer a lei, o que
vale dizer, aplica-la, pois esta é a única linguagem que o povo brasileiro
entende: a aplicação da lei - em outras palavras, a punção.
Num
país em que as pessoas aprendessem educação, em primeiro lugar, em casa, e,
depois, nas escolas, certamente elas saberiam respeitar o próximo, não o
incomodando com volume de som altíssimo; porém, como estamos no Brasil,
enquanto as leis não forem aplicadas, a farra continuará.
E
durma-se com um barulho desses.
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