Osmar era uma
daquelas pessoas que podiam ser classificadas como “cliente” do sistema
penitenciário. Logo que iniciei na advocacia – e antes de ser aprovado no
concurso para Procurador do Estado – eu o vi ser preso na avenida Brasil, num
sábado à noite, por ironia defronte a casa do Juiz de Direito titular da 3ª
Vara Criminal da comarca de Campinas. Ele era suspeito de haver praticado um
roubo com emprego de arma contra um taxista. Foi processado e condenado.
Por um período
curto de tempo, no ano de 1977, prestei, na qualidade de voluntário,
assistência jurídica criminal aos presos da cadeia pública do São Bernardo,
auxiliando no PAR – Patronato de Ajuda ao Reeducando, que fora criado pelo Juiz
de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca de Campinas e Corregedor dos
Presídios e da Polícia Judiciária, Roberto Telles Sampaio. Meu trabalho era
desenvolvido aos sábados à tarde. Por essa ocasião, travei conhecimento com
Osmar – ele ainda estava preso.
Em 1983, voltei
a prestar serviços naquela cadeia pública, mas oficialmente, como Procurador do
Estado atuando na Assistência Judiciária. E reencontrei Osmar. Conversamos.
Perguntei – como sempre se pergunta – o motivo da prisão. Primeira frase que
ele disse: “por roubo, mas eu juro que não cometi”. Pedi detalhes. Ele mos deu.
Ele estava numa
manhã no terminal rodoviário do Mercado Municipal quando foi abordado por
policiais militares que estavam acompanhados de uma pessoa que o reconheceu
como tendo praticado um roubo com emprego de arma em seu estabelecimento
comercial, um posto de gasolina no bairro Castelo, durante o período noturno,
dias antes. Afiançou que não fora ele: nessa noite, dizia, a seleção brasileira
de futebol jogava contra a seleção do Chile, no Maracanã, e ele assistiu a todo
o jogo na casa de sua irmã, na presença de seu cunhado; o casal residia na
avenida Anchieta, perto da Prefeitura. Foi indiciado em inquérito policial, o
Ministério Público o denunciou, o processo tramitou na 4ª Vara Criminal – ele
foi reconhecido em juízo pelo dono do posto como sendo o ladrão – e ele acabou sendo condenado, sendo-lhe imposta
a pena de 6 anos de reclusão e 2 anos de medida de segurança[1]. A
sentença havia transitado em julgado; cabia somente uma revisão (criminal)
quando desse reencontro.
Fui ao fórum
ler o processo: ele havia dito, em seu interrogatório, a mesma versão que me
oferecera. O seu advogado – particular – havia arrolado o seu cunhado como
testemunha de defesa, que afirmou em seu depoimento que assistira ao jogo com
Osmar, mas nada foi perguntado acerca da data e do horário do jogo. O seu
álibi, assim, não pôde ser cabalmente – conforme exigem a doutrina e a
jurisprudência – demonstrado.
Como primeira
providência, remeti ofício em papel timbrado da Procuradoria Geral do Estado à
CBD – esse era o nome da confederação que mandava nos destinos do futebol
brasileiro, cujo presidente era o Almirante Heleno Nunes – solicitando cópia da
súmula do jogo. Dias depois me foi remetida: estava escrito em espanhol, pois
tinha sido arbitrada por um paraguaio. Nela constava a hora do início do jogo,
o tempo de intervalo, a hora do encerramento, os gols, os marcadores dos gols
(a seleção brasileira vencera por três a dois), o número de pagantes, a renda,
a emissora de televisão que o havia transmitido (Rede globo, evidentemente),
tudo foi informado. Pelo tempo de duração da partida, era impossível que ele
houvesse praticado o roubo.
Elaborei o
pedido de revisão, evidentemente acompanhado da súmula e de xerox de um mapa da
cidade de Campinas que abrangia as duas regiões, a em que ele estivera
assistindo ao jogo e a onde ocorrera o roubo.
Duas Câmaras do
então Tribunal de Alçada Criminal julgaram o pedido (pelo regimento interno, as
revisões somente poderiam ser julgadas por duas câmaras), no total de dez
juízes, tendo havido empate na decisão: cinco indeferiam o pedido (crendo na
palavra do dono do posto – vítima –, que havia feito o reconhecimento) e cinco
deferiam para absolver (crendo na palavra do acusado, secundada pela de seu
cunhado, agora revigorada pela súmula). Em casos que tais, estabelecia o
regimento – como em geral estabelecem os regimentos dos tribunais – que deve
prevalecer a decisão que favorece o peticionário.
E, por conta do
regimento, apesar do empate, Osmar foi absolvido desse crime “que, juro, esse
eu não cometi”.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)
[1] . Nessa época – antes de
1984 – o réu reincidente em crime doloso ficava sujeito não somente à pena, mas
também à medida de segurança: era o tempo do sistema do duplo binário (pena e
medida de segurança); hoje, é o sistema vicariante (pena ou medida de segurança).
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