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As várias mortes do prefeito - capítulo 76




          As audiências, devido ao grande número de pessoas ouvidas em cada uma, bem como ao tempo que cada depoimento tomava, duravam várias horas. Às vezes, oito horas, com apenas trinta minutos de intervalo, tempo que mal dava para fazer um lanche frugal. E nesse intervalo ainda era necessário atender os repórteres, já que não era permitido a todos que ficassem na sala – unicamente por não comportar um número tão grande de pessoas (normalmente, compareciam dois promotores de justiça – nunca compreendi o porquê disso –, o juiz de Direito, a escrevente que apanhava os depoimentos em estenotipia, o advogado da família, alguns familiares [às vezes o irmão e a viúva], uma advogada do PT, “Andinho” e dois policiais militares escoltando-o, eu e uma estagiária da PAJ).
          Além disso, era necessária uma preparação para as audiências: como quase todas as pessoas que seriam ouvidas em juízo já tinham sido ouvidas ou pela polícia ou pelos promotores de justiça, eu lia os depoimentos que eles haviam prestado e comparecia à audiência já sabendo o que seria dito por elas e as reperguntas que eu faria.
          Dessas testemunhas, umas poucas foram arroladas por mim na defesa prévia. Uma delas foi o médico-legista que fez a necropsia no corpo do prefeito. Eu já tinha tido decepção com depoimento de perito, desatento a uma lição do magistral Francesco Carrara[1], em processos anteriores na Vara do Júri, e não fiz reperguntas. O professor de Medicina Legal da Faculdade de Direito da PUCCamp, Antonio Francisco Bastos, já havia se proposto a esclarecer algumas dúvidas que eu tinha quanto ao ferimento, mas, desgraçadamente, ele faleceu em pleno curso do processo.
          Outra testemunha que eu arrolei foi a filha de um empresário de Campinas, de nome Monique, que havia sido sequestrada por Valmir, “Boris” e “Sidão”, no dia 4 de setembro e que teve o telefone móvel celular monitorado[2]. Eu queria apenas que ela dissesse o que já havia dito ao juiz titular da 4ª Vara Criminal da comarca de Campinas no processo em que apurava o crime de que ela fora vítima: que ele tinha certeza de que o banco do Vectra que Valmir usava era de couro; o do Vectra apreendido era de tecido.
          Arrolei também um policial civil, figura muito polêmica em Campinas, que havia trabalhado nas investigações, especialmente naquelas que indicaram os quatro rapazes como matadores do prefeito. Ele me procurou oferecendo-se para ser arrolado como testemunha, especialmente para dizer que os rapazes haviam confessado a autoria do homicídio.


[1] . Carrara relata um caso que defendeu: um jovem bem apessoado apostou numa taverna que cravaria uma moeda de metal no tampo da mesa de madeira. Arremessou-a e ela não cravou. Nova aposta, de maior valor, e não se cravou a moeda. Quando a aposta estava num valor bem elevado, ele cravou a moeda. O apostador que concorria consigo supôs que ele houvesse trocado subrepticiamente a moeda por um pedaço de aço, com as bordas cortantes, e foi à polícia. Jovem foi preso e acusado. Os peritos disseram que era impossível cravar uma moeda na madeira. Visitando-o no cárcere, ele pediu a Carrara uma moeda igual à que utilizara e cravou-a em todos os locais da cela que fosse feito de madeira. No dia do julgamento, o jovem, em sua defesa, demonstrou ser possível o fato cravando novamente a moeda quantas vezes quis. Daí a crítica de Carrara aos peritos: “os peritos, fiéis sempre ao seu dever de dizer o que queira o acusador e de encobrir com suposições sua própria ignorância, proclamaram que o fato era impossível. (“Programa de Derecho Criminal”, volume 6 [4 da parte especial], § 2.362, página 5, Editorial Temis Bogotá – itálico no original). Ver capítulo 75.
[2] . Ver capítulo 73.

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