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Marli



      
    Ela era manicure e formou uma união estável com um rapaz que trabalhava numa universidade estadual. A união produziu um filho. Moravam numa vila popular, perto da universidade. Davam-se ao vício das drogas.
          Houve uma denúncia anônima de tráfico ao distrito policial da área; policiais estiveram no local; ali estava apenas Marli. Foi encontrada droga, cocaína, alguns papelotes. O companheiro dela foi investigado e posteriormente processado. Durante o curso do processo, Marli concordou em assinar um documento – praticamente uma confissão – em que admitia que a droga lhe pertencia. O companheiro foi absolvido e iniciou-se um processo contra ela, que redundou em condenação por tráfico de droga: 3 anos de reclusão no regime fechado e 50 dias-multa.
          Ela estava presa na cadeia pública de Vinhedo, eufemisticamente chamada de “cadeia feminina”. Num dia de visita o ex-companheiro foi vê-la: ao entregar o “jumbo” ao carcereiro para a revista, foi encontrada droga e o ex-companheiro foi preso e autuado em flagrante pelo crime de tráfico de entorpecente, com a agravante de ser praticado o crime em presídio. A família dele procurou-me e assumi a defesa.
          A prova esmaeceu-se e ele foi absolvido. Condoí-me da situação de Marli e resolvi fazer um pedido de progressão de regime (essa época o tema era altamente controverso – alguns juízes e tribunais não admitiam a progressão de regime nos crimes hediondos, como o tráfico de entorpecente). Foi concedida a progressão ao regime semi-aberto (colônia penal agrícola, industrial e similar). Não havia nenhum estabelecimento feminino. O juiz concedeu então o regime aberto. Marli foi solta.
          Durante o cumprimento da pena no regime aberto, um sábado pela manhã sua ex-sogra (se é que existe ex-sogra...) procurou-me em meu apartamento: Marli fora presa novamente, desta vez sob a acusação de porte (o entorpecente – maconha – fora encontrado na geladeira), e estava novamente encarcerada em Vinhedo. Fui ao fórum ler a cópia do flagrante. Requeri a liberdade provisória. Foi concedida. Assumi a defesa dela “pro bono”. O processo demorou excessivamente. Ocorreu a prescrição, requerida e prontamente decretada pelo juiz. Ambos os casos se encerraram.
          Uma sexta-feira pela manhã, bem cedo, fui, como é de hábito, fazer uma caminhada no Bosque dos Jequitibás. Quando saía do local, surpreendeu-me uma chuva forte. Depois de caminhar pela Rua Coronel Quirino alguns quarteirões debaixo do aguaceiro, na esquina com a Rua Conceição ouvi uma voz feminina que perguntava: “o senhor quer carona, Dr. Silvio?”. Assustado, olhei e vi que era Marli com uma sombrinha, toda gentil.

          Gentilmente também, recusei a oferta: afinal, eu já estava totalmente molhado.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)

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