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Na casa da sogra




     
       Premido por motivos financeiros e também forçado pelo fato de o marido haver sido dispensado do trabalho e estar desempregado, o casal foi residir numa edícula nos fundos da casa da mãe da mulher. Ambos, marido e mulher, viviam bem, apesar das constantes interferências da sogra, existindo, como é comum acontecer em situações similares, algumas rusgas entre os cônjuges, nada que fosse grave.
            Numa dessas rusgas, a sogra resolveu interferir e o genro, não mais suportando a interferência, tentou agredi-la, o que fez com que ela se refugiasse em sua casa e acionasse a Polícia Militar. Quando a guarnição chegou, um dos componentes entrou no quintal e dirigiu-se para a casa dos fundos, onde morava e estava homiziado o genro. O policial ordenou-lhe que saísse, não tendo sido atendido. Iniciou-se uma discussão. Depois de alguns segundos, o genro efetuou um disparo de arma de fogo, o mesmo tendo feito o policial militar. Ninguém foi atingido. Depois dessa refrega, os ânimos serenaram-se e o genro foi encaminhado ao plantão policial, Talvez por conta de que ninguém foi atingido, a autoridade preferiu não lavrar o auto de prisão em flagrante. O genro foi indiciado, e posteriormente denunciado, por homicídio simples tentado, a doutrinariamente classificada “tentativa branca”, tendo como vítima o miliciano.
            O réu foi pronunciado e, depois de transitar em julgado a sentença, o processo foi encaminhado para a comarca de Jundiaí para ser julgado pelo tribunal do júri daquele município[1]. Em casos que tais, as testemunhas não são obrigadas a comparecer, nem a vítima, e foi isso que ocorreu: ninguém compareceu para ser ouvido e, ante esse pauperismo probatório, o Ministério Público decidiu pugnar pela desclassificação do crime de homicídio tentado para o crime de periclitação da vida ou da saúde[2]. Secundei-o, obviamente, no pedido, e os jurados à unanimidade acolheram essa tese, tendo sido o réu condenado pelo crime descrito no artigo 132 do Código Penal, com a suspensão condicional da execução da pena. Naquele tempo não existia ainda a figura da “infração penal de menor potencial ofensivo”, instituída pela lei n° 9.099/95, que daria outra solução ao caso.
            Não consigo lembrar se ele voltou a morar com a sogra. Acredito que não, claro.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", a ser publicado.)



[1]. Essa medida processual chama-se “desaforamento”.
[2]. Artigo 132 do Código Penal. Disparo de arma de fogo não era ainda crime: era meramente uma contravenção penal. E o teor do artigo em questão é este: "expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente", com a pena de detenção, de 3 meses a 1 ano "se o fato não constitui crime mais grave". Esta última frase está a declarar que o crime é acessório, ou seja, só se aplica se a conduta não couber em delito mais grave. Tal tema - o princípio da acessoriedade - é tratado no "concurso aparente de normas (ou leis) penais".

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