Pular para o conteúdo principal

O suspeito torturado




   
         Era um daqueles dias quase “morto”, uma tarde modorrenta, com quase nenhum movimento de público em busca de orientação jurídica: uma sexta-feira, período da tarde, quase se iniciando o fim de semana. O expediente era basicamente interno.
            O aluno que estagiava sob a minha orientação, hoje Promotor de Justiça, foi à minha sala e disse que uma pessoa queria ser atendida, afirmando ter sido torturada por policiais. Respondi dizendo que trouxesse a pessoa à minha presença. Ela veio. Contou a história. Era segurança em uma agência bancaria localizada na avenida Julio de Mesquita. Ladrões armados haviam invadido o estabelecimento. Dominaram todos e praticaram um roubo. As investigações apontaram uma conhecida quadrilha. O segurança era cunhado de um dos membros. Suspeitou-se que ele havia passado informações aos ladrões. Foi detido e torturado.
            Perguntei quem havia feito isso. Nomeou os policiais civis (era de se acreditar, pois eles eram useiros e vezeiros nessa prática). Ainda, porém, descrente do que ele dizia, indaguei como fora torturado. Ele descreveu: "queimaram-me com brasa de cigarro". Perguntei: em que parte do corpo? Ele respondeu: "na virilha". Pedi ao estagiário que fechasse a porta da sala e à pessoa que arriasse as calças e mostrasse os ferimentos causados pela brasa. Ele me atendeu: estava realmente com aquelas queimaduras de brasa de cigarro na parte interna das coxas, em que a pele é mais fina e sensível.
            Incontinenti, telefonei à escrevente da Vara do Júri, pois esta vara acumulava as funções de Corregedoria da Polícia e dos Presídios. Disse a ela que encaminharia uma pessoa que fora torturada, com um ofício em papel timbrado da PGE requerendo providências. Ela me afiançou que seria imediatamente requisitado o exame de corpo de delito. Fiz o oficio. Entreguei-o à pessoa. Ela foi ao fórum e de lá encaminhada ao IML com uma requisição judicial de exame de corpo de delito. 
            Passado muito tempo, eu soube que um daqueles policiais civis apontados pelo segurança, o mais famoso deles e apontado no livro "Brasil, nunca mais" como torturador durante a ditadura militar, estava sendo processado por lesão corporal leve (ainda, óbvio, não existia a lei criminalizando a tortura[1]) na 3ª Vara Criminal local. Fui ler o processo: referia-se à tortura infligida ao segurança do banco assaltado, ou seja, a pessoa que eu atendera. Inexplicavelmente, eu, que vira "com os meus próprios olhos" as marcas no corpo do suspeito, não fora arrolado como testemunha na denúncia. Nem o estagiário. Embora não tivéssemos visto a tortura, vimos os ferimentos causados e ouvimos o relato.
            O policial foi absolvido por falta de prova. 
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", volume II, a ser publicado.)



[1]. A tortura foi criminalizada somente no ano de 1997 pela Lei nº 9.455.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante