Mas o fato em
si está bem vívido na minha memória. Ele era um daqueles presos esquecidos pelo
sistema, cumprindo pena numa cadeia pública em que não havia assistência
jurídica, numa cela com mais quinze outros (ou mais) desafortunados. Era muito
simples, afável, conversava bem, era humilde e respeitador.
Atendi-o certa
ocasião e ele dizia que estava preso mais tempo do que a pena que lhe fora
imposta. Que não via a hora de deixar o cárcere. Que – esta descrição era de
emocionar – subindo num dos catres, ele, com algum esforço, conseguia enxergar
a copa da mangueira que havia no quintal da casa que a sua família morava (e
que morara até ser preso), pois a modesta moradia era ali mesmo no bairro do
São Bernardo.
Interessei-me
pela sua história, principalmente pela parte em que ele relatava que estava
preso mais tempo do que a pena determinava. Fui ao fórum, retirei o seu
processo de execução. Havia vários apensos. Várias penas a cumprir. Li o
cálculo de penas. Somei uma a uma. Alcancei a pena total. Ele tinha razão: a
pena total que lhe fora imposta já estava cumprida. Ele estava preso
indevidamente.
Elaborei uma
petição ao magistrado apontando as penas, a soma de cada uma, o total, o início
do cumprimento, culminando por demonstrar que a reprimenda já havia sido
cumprida e que, portanto, ele deveria ser solto. Atendendo ao meu pedido, o
magistrado, depois de que o Ministério Público se manifestou favoravelmente ao meu pleito, determinou a
expedição de alvará de soltura em favor do condenado pelo cumprimento da pena.
Ele foi solto.
A primeira providência ao sair foi ir à casa de um desafeto, com quem se
desentendera no presídio, tomar satisfações. Deu-se mal. Ao tentar agredi-lo, o
desafeto sacou de uma arma de fogo que portava e fez vários disparos,
acertando-o e matando-o.
Melhor teria
sido permanecer preso: teria continuado vivo.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)
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