Pular para o conteúdo principal

O televisor e a maconha



 
        
    Claro que o evento estava ligado à drogadicção: o jovem era viciado em entorpecente, mais especificamente em "maconha". Para sustentar o vício, já que não trabalhava, ele subtraiu um televisor da casa em que residia com a sua família. Fácil de carregar, pois era portátil, caminhava ele pela avenida Francisco Glicério, centro, quando foi visto por um policial que estava numa viatura, como se diz, “descaracterizada”. Desconfiando de algo, o policial abordou-o sem se identificar e perguntou onde ele ia com aquele eletrodoméstico. Ele prontamente respondeu que ia trocá-lo por droga e contou onde morava o traficante e era num bairro afastado, Vila Teixeira. O policial, simulando que ia naquela mesma direção, ofereceu-lhe carona e ele aceitou. Chegando ao local, o policial, mostrando-se mais solícito, disse que aguardaria dentro do carro que se ultimasse a transação, para levá-lo de volta. Dito e feito: depois de alguns minutos, o drogadicto voltou sem o televisor, mas com a droga. A esta altura o policial já havia pedido reforço e tanto traficante quanto viciado foram presos.
            Substituindo um colega na 1ª Vara Criminal, coube a mim atuar na defesa do viciado. É claro que ele não estava sendo processado pelo furto do televisor, pois se trata de escusa penal absolutória[1], mas pela compra do entorpecente. Apresentei como tese de defesa que o policial também deveria ser processado pois na relação causal, de causa e efeito, se o policial não tivesse prestado anuência e auxílio, o crime não teria ocorrido. Tratava-se, a meu ver, de modalidade de crime impossível e eu já havia atuado num caso anterior semelhante nessa mesma vara[2] e obtido uma ordem de “habeas corpus” no Tribunal de Alçada Criminal para trancar a ação penal.
            A princípio, a minha tese, para meu desapontamento, não foi acolhida, porém, como o acusado era menor de 21 anos e, nesse caso, o prazo prescricional é reduzido de metade, ocorreu essa extintiva da punibilidade, para minha decepção, porém para alegria do réu. Decepcionou-me porque se não fosse acolhida pelo magistrado (e tudo indicava que não seria), eu poderia recorrer ao TACrimSP, onde já obtivera êxito em caso semelhante.
 (Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos II", a ser publicado.)

[1]. Artigo 181 do Código Penal: “é isento de pena            quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
[2]. “O furto imaginário de móveis”, “Casos de júri e outros casos”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante