O
fato ocorreu na “cidade maravilhosa” e, como quase tudo o que acontece lá,
ganhou contorno nacional, quiçá internacional. Numa simples verificação de
trânsito, aleatoriamente foi parado um veículo cujo condutor não o tinha
licenciado – o único documento que portava era a nota fiscal de compra, hábil
somente por alguns dias -, bem como não portava a carteira de habilitação
(havia esquecido o fundamental documento na bolsa da esposa, segundo explicou o
infrator). Aplicadas as respectivas multas, inexoráveis no caso, ante a ameaça
de guinchamento do veículo – medida trivial, já que o condutor não se mostrava
habilitado à condução -, o infrator identificou-se como juiz de direito,
ameaçando “dar voz de prisão” à agente de trânsito por abuso de autoridade,
obtendo como resposta a frase “juiz não é deus”. Foi o quanto bastou para,
agora, sua excelência sentir-se desacatado (a título de esclarecimento, o desacato
é um crime contra a Administração Pública praticado por particular, consistindo
em “desacatar” [ofender] funcionário público no exercício de suas funções ou em
razão delas), indo ao Distrito Policial para que ali fosse lavrado um TCO
(termo circunstanciado de ocorrência) em que ele figurava como vítima e a
agente de trânsito como autora. O TCO foi recebido pelo Ministério Público que
não viu indício de crime e requereu o arquivamento.
Porém,
a suposta ofensa não passaria impune, pois o magistrado propôs uma ação por
danos morais contra a agente, logrando obter em primeira instância a quantia de
5 mil reais a título de indenização; a condenação foi confirmada em segunda instância. Antes mesmo de
que a sentença fosse proferida, sua excelência foi novamente barrado numa blitz
e se negou a soprar o bafômetro, o que lhe acarretou, de plano, a apreensão (e
perda) da carteira de habilitação e a imposição de multa no valor de
R$1.915,00. Sobre a condenação da agente, José Simão disse uma frase lapidar: "o juiz acha que é deus; o tribunal tem certeza".
Alguma "alma boa" propôs no Facebook que as pessoa se cotizassem, via "vakinha.com", para pagar a indenização e prontamente foram arrecadados mais de 20 mil reais. Ademais, foi criado um perfil na mesma rede social contra o juiz.
Alguma "alma boa" propôs no Facebook que as pessoa se cotizassem, via "vakinha.com", para pagar a indenização e prontamente foram arrecadados mais de 20 mil reais. Ademais, foi criado um perfil na mesma rede social contra o juiz.
Ambos
os fatos ligados ao trânsito foram analisados pela Corregedoria Geral do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que, claro, dando prova da existência do espírito de corpo, não enxergou nenhuma falta
praticada pelo magistrado, com o que não concordou a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça, que avocou os autos para novo exame.
Mais
tarde, veio à luz, por meio da imprensa investigativa, que o magistrado houvera se
envolvido em dois episódios na cidade de Búzios: teria auxiliado um advogado
numa demanda em que causídico pleiteava 1 milhão de metros quadrados numa área
nobre da cidade, e, em outro episódio mais esquisito, teria adentrado um navio
de cruzeiro que aportara em Búzios e pretendera fazer compras no duty-free, o que não poderia ser feito, e o
imbróglio somente foi resolvido com a chegada de agentes da Polícia Federal. A
matéria, publicada pela Folha de São Paulo, não esclareceu se as compras foram
feitas.
Havia
uma antiga tese afirmando que o juiz de direito era representante de Deus na
terra, pois somente uma pessoa com poderes divinos conseguiria solucionar
conflitos, já que uma das principais qualidades da pessoa a tanto designada era
– é – a imparcialidade, além da onipresença e da onisciência - sem dúvida, o Criador testemunhou o fato que lhe era apresentado como conflito a ser solucionado já saberia de antemão quem tinha razão. Porém, uma pessoa que apenas representasse a divindade,
não uma que exigisse ser tratada como tal, a ponto de exigir que todos os
pobres mortais lhe prestassem homenagens – e orações.
Mas
o Rio de Janeiro é pródigo nesse tema: há anos um magistrado ajuizou uma ação
contra o condomínio em que residia exigindo que os empregados o chamassem de “doutor”.
Ele foi derrotado em primeira instância (ao contrário do que ocorreu com o seu
colega), recorreu ao Tribunal de Justiça infrutiferamente, e, inconformado,
recorreu ao Supremo Tribunal Federal.
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