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Até agora ninguém foi preso.




      Ou: por enquanto ninguém foi preso. Essa frase se tornou corriqueira nos telejornais de todo o Brasil e habitualmente encerra a locução de notícias sobre crimes, muitas vezes sem que se saiba o nome do (suposto) criminoso (ou criminosos). Por exemplo: “três homens encapuzados 'assaltaram' uma agência bancária no bairro Aparecidinha. Até agora ninguém foi preso”. A primeira pergunta que me assalta (sem nenhuma conotação com o fato) é a seguinte: como alguém desconhecido poderia ser preso? A não ser que a polícia tivesse poderes mediúnicos ou extrassensoriais ela poderia, usando talvez uma bola de cristal, descobrir a identidade dos “assaltantes” e o local em que eles estivessem e efetuar a prisão.
      Essa frase tola (imagino que os redatores dos telejornais não se deram conta do grau de tolice que ela exprime, ou, talvez, o que é duvidoso, tenham alcançado o grau de bobagem que ela encerra todavia continuam escrevendo-a somente como uma crítica velada à polícia) leva a uma reflexão séria, contida numa pergunta: em quais situações uma pessoa pode (melhor dizendo: deve) ser presa?
      Até o ano de 1988, data em que foi promulgada a constituição-cidadã (como gostava de chama-la o deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a “constituinte”), as prisões arbitrárias eram feitas e toleradas: eram as chamadas “prisões para averiguação”. Elas ocorriam em geral na quinta-feira, que era para que o preso sequer conseguisse contratar um advogado, e, se conseguisse, o profissional somente conseguiria tentar alguma medida judicial na segunda-feira (essa prática resiste até hoje, como se pode constatar na operação Lava-Jato [em menor escala aconteceu em Campinas, no famoso “caso SANASA”]); ademais, não existiam ainda os plantões judiciários. Como também o preso precisa se alimentar, tão logo a pessoa era encarcerada o seu nome passava a constar de uma lista para que a ele fossem fornecidas as refeições.  
      Com o advento da Constituição de 1988, a prisão somente pode efetuar-se se a pessoa for surpreendida em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente, no caso, o juiz de Direito. As situações de flagrante estão descritas no artigo 302 do Código de Processo e são aquelas em que a pessoa está cometendo o crime, acabou de cometê-lo ou é encontrado, logo após, em situação que autorize a presumir que ele cometeu o crime. A etimologia da palavra flagrante é interessante: ela deriva do latim “flagrans”, que significa queimar, arder. A doutrina divide em flagrante próprio, impróprio e presumido. Num crime de homicídio, por exemplo, a pessoa é surpreendida matando a vítima; ou é surpreendida quando acabou de mata-la; ou, finalmente, é surpreendida com as vestes suja de sangue e portando a arma utilizada no crime.
      A autoridade competente para decretar a prisão – e aqui a Constituição inovou – é somente o juiz de Direito e ela se divide em prisão temporária e prisão preventiva, ambas espécies do gênero prisão provisória ou cautelar. Como a mesma constituição adotou o princípio da presunção (ou estado de inocência) de inocência (“ninguém será considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença que o tenha condenado”), ele seria impeditivo de que uma pessoa fosse presa antes de que tenha transitado em julgado a sentença que o tivesse condenado, mas o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma ocasião, já se posicionou no sentido da legalidade da prisão antecipada.
      A prisão provisória é decretada ainda no curso do inquérito policial; já a preventiva, no curso do processo penal. É óbvio que para que o juiz decrete uma ou outra há a necessidade da ocorrência de alguns requisitos que, se não existirem, a prisão decretada será considerada ilegal e, portanto, um constrangimento ilegal à pessoa presa.
      Quando a mídia, ao final da notícia da ocorrência de um crime, afirma que “ninguém foi preso”, tal prisão somente poderia ser a em flagrante delito, pois não haveria tempo de que fosse feito um pedido nesse sentido a um juiz, mas como muitas vezes no próprio contexto da notícia está dito que eram desconhecidos, encapuzados e outros que tais, e que fugiram, fica nítida imbecilidade da afirmação.

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