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A legítima defesa e a morte em frente ao batalhão



      Ela era escrivã de polícia e naquela noite foi ao pronto-socorro de um conhecido hospital de Campinas para que seu filho fosse examinado, pois estava febril. Estavam, ela e o filho, acompanhados pelo marido (e pai da criança): atendida a criança, o médico entendeu ser de bom aviso submeter o pequeno a um RX dos pulmões. Feita a radiografia, enquanto o médico examinava-a, a família resolveu esperar dentro do carro, no estacionamento. Pelo espelho retrovisor, a escrivã viu que dois homens “em atitude suspeita” perambulavam pelo local e, pior: foram em direção ao seu carro. Inopinadamente, um deles, portando uma arma de fogo, abriu a porta do passageiro, ordenando que o marido descesse e entrou em seu lugar, ordenando que a escrivã desse partida no carro e deixasse o local.
      Ela, pensando em si e na criança que estava no banco de trás, sacou uma arma que portava e efetuou um só disparo contra o ladrão, acertando-o. Ele, ferido, deixou o carro e saiu a princípio correndo e depois andando, caindo desfalecido em frente, por ironia, de um batalhão da Polícia Militar, morrendo ali. Para apurar os fatos foi instaurado inquérito policial e, como de praxe, encaminhado ao fórum. O Promotor de Justiça a quem coube analisa-lo, entendeu que, ainda que todas as circunstâncias indicassem que a escrivã agira em legítima defesa própria e de terceiro (seu filho), estando presentes todos os requisitos dessa excludente da ilicitude, denunciou-a por homicídio. Fui designado para atuar em sua defesa, não impedindo, todavia, que ela a qualquer tempo contratasse um advogado de confiança, pois a minha nomeação fora feita como defensor público.
      Antes de que fosse realizado qualquer ato judicial, como or exemplo o interrogatório (que naquela época era o primeiro ato processual), requeri uma ordem de “habeas corpus” ao Tribunal de Justiça de São Paulo afirmando que o processo instaurado contra ela era um autêntico constrangimento ilegal já que ela agira em legítima defesa. A ordem foi concedida por unanimidade, determinando-se o “trancamento” da ação penal, ou seja, o seu encerramento e consequente arquivamento.
      Nunca a vi, nem ela a mim. Passados vinte anos ou mais, um colega esteve num distrito policial examinando um inquérito e disse à escrivã que o atendia que, na realidade, quem assumiria a “defesa” (na fase de inquérito não vigora o princípio constitucional da ampla defesa) do investigado seria outro profissional, dizendo o meu nome. Por uma dessa incríveis coincidências que a vida nos prepara, a escrivã era aquela mesma que eu havia defendido muitos anos antes. Ela contou ao advogado a sua desdita, dizendo – exageradamente – que eu fora o seus “salvador”, mas que ela não tivera a oportunidade de de me conhecer (nem eu a ela).
      Assumindo a “defesa” do investigado, fui, poucos dias após, àquele distrito acompanha-lo num dia em que ele seria ouvido. Seria a oportunidade de ouro para que, depois de décadas, finalmente nos conhecêssemos. Em outra surpresa preparada pela vida, eis que na data designada ela não estava no distrito, pois estava em gozo de férias.
      Mas não faltará oportunidade para o encontro, pois, pelo “andar da carruagem”, o inquérito policial demorará meses, quiçá anos.

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