Capítulo III – Crimes contra o patrimônio
O primeiro dos crimes patrimoniais – o furto,
artigo 155 - contém uma forma qualificada em que a mentira, sob a forma de
fraude, é empregada na realização do tipo. A descrição legal do furto,
“subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, no tipo qualificado
fica acrescida da circunstância de que o fato foi praticado “mediante fraude”
(artigo 155, § 4º, inciso II). Conforme Damásio de Jesus, “a fraude também qualifica o furto.
Trata-se de um meio enganoso capaz de iludir a vigilância do ofendido e permitir
maior facilidade na subtração do objeto material. Ex.: o sujeito se fantasia de
funcionário da companhia telefônica para penetrar na residência da vítima e
subtrair-lhe bens. Há furto com fraude no caso dos dois sujeitos que entram num
estabelecimento comercial, sendo que, enquanto um distrai o ofendido, o outro
lhe subtrai bens”[1].
Para Mirabete, “a fraude é o meio
enganoso, o embuste, o ardil, o artifício empregado pelo agente para subtrair a
coisa alheia. Comete furto qualificado pelo emprego de fraude quem logra ser
admitido no local onde pratica a subtração afirmando, falsamente, tratar-se de
funcionário de concessionário de serviço público; que distrai o balconista
mandando-o em busca de mercadoria para subtrair outra; que se apresenta como convidado
em uma festa para penetrar na residência em que vai furtar; que, como meretriz,
contrata o congresso carnal apenas para subtrair a carteira do ‘cliente’; que
obtém as chaves do veículo de que se apodera sob o pretexto de que pretende
compra-lo etc. Há furto com fraude na subtração pela doméstica que se emprega
apenas para praticá-lo”[2].
Segundo Delmanto, a fraude “é o emprego de ardil ou artifício para a subtração
da coisa”[3]
Em
outro crime patrimonial a mentira existe e é o crime de apropriação de coisa
havida por erro, caso fortuito ou força da natureza, descrito no artigo 169,
“caput”, do Código Penal. A descrição típica é esta: “apropriar-se alguém de
coisa vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza”. Mais
propriamente, na modalidade coisa vinda ao poder do sujeito ativo “por erro” e
a mentira é contemporânea à ação e
também a sucede. Ele obtém a coisa por equívoco e silencia, praticando um
silêncio mentiroso. Conforme Mirabete, “erro
é o falso conhecimento a respeito do objeto, e com ele a manifestação da
vontade da entrega da coisa, esta viciada, não correspondendo àquilo que o
sujeito deseja. O erro pode incidir sobre a pessoa,
quando o sujeito, por exemplo, faz um pagamento ou entrega da coisa a alguém
supondo que se trata de um homônimo, que é o verdadeiro credor ou destinatário.
Pode o engano girar sobre a coisa: entrega-se um livro a alguém com cédulas que
ficaram esquecidas entre suas páginas; vende-se uma joia de fantasia e
entrega-se uma verdadeira etc. Haverá erro na obrigação, ou na razão da entrega, quando se faz um pagamento
indevido, ou se salda, pela segunda vez, a mesma dívida etc. Ensinam os
doutrinadores que há erro no que se refere a pior ou melhor qualidade da coisa,
como também quanto a menor ou maior quantidade e no pagamento a maior.
Configura o ilícito o saque bancário de quantia sabidamente creditada por
engano na conta corrente do agente”[4].
Já para Damásio de Jesus, “o erro pode incidir sobre pessoa ou coisa. Há erro
sobre pessoa quando um indivíduo é tomado por outro. Assim, suponha-se que que
o estafeta entregue objeto de alto valor a um homônimo do destinatário.
Percebido o erro após a entrega, o autor não devolve a encomenda. O erro também
pode recair sobre a coisa. Ex.: o sujeito vende livros velhos a terceiro, sendo
que num deles se encontra alta quantia em dinheiro”[5].
Outra
modalidade delituosa em que a mentira compõe o tipo penal, porém sob a
denominação de fraude, é o crime de estelionato, o crime contra o patrimônio
icônico do engano, da mentira. A sua definição legal está no artigo 171:
“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo
ou mantendo alguém em erro, mediante o emprego de artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento”. O vocábulo erro, constante do tipo legal, como
antônimo da realidade, e esta sempre se expressa de forma verdadeira, já
demonstra que há mentira; ademais, há o emprego do vocábulo “fraudulento” a
significar a mentira. As formas de iludir a pessoa para leva-la a erro e com
isso obter indevida vantagem em seu prejuízo estão consubstanciadas nas
palavras “artifício”, “ardil” e “meio fraudulento. Para Mirabete, “artifício existe quando o agente se
utilizar de um aparato que modifica, ao menos aparentemente, o aspecto material
da coisa, figurando entre esses meios o documento falso ou outra falsificação
qualquer, o disfarce, a modificação por aparelhos mecânicos ou elétricos,
filmes, efeitos de luz etc. O ardil é a simples astúcia, sutileza,
conversa enganosa, de aspecto meramente intelectual. Tem-se entendido,
corretamente, que a simples mentira, se hábil a enganar, configura o ardil,
embora Bento de Faria acredite que ela só possa ser incluída quando for
acompanhada de artifícios ou de outras manobras suscetíveis a enganar”[6].
No tipo há ainda a expressão “qualquer outro meio fraudulento”, o que deve ser
entendido como “qualquer outro meio fraudulento que, à semelhança do artifício
e do ardil, possa induzir ou manter a vítima em erro, e, com isso, obter a
vantagem indevida em seu prejuízo. Segundo Damásio, “o CP, mais uma vez,
emprega a interpretação analógica. Após a fórmula casuística artifício e ardil, emprega fórmula genérica, em que se contém qualquer espécie
de fraude que tenha a mesma natureza daqueles meios. Na fórmula genérica ingressam
engodos como a mentira e a omissão do dever de falar (silêncio)”[7].
Para Delmanto, “para que o estelionato se configure, é necessário: 1ºº o
emprego, pelo agente, de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento;
2º) induzimento ou manutenção da vítima em erro; 3º) obtenção de vantagem
patrimonial ilícita pelo agente; 4º) prejuízo alheio (do enganado ou de
terceira pessoa”[8]. O
crime de estelionato tem várias outras facetas, mas sempre tendo o engano como
fator comum a todas: I – disposição de coisa alheia como própria (artigo 171,
inciso I); II – alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria (inciso II);
III – defraudação de penhor (inciso III); IV – fraude na entrega da coisa
(inciso IV); V – fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
(inciso V); VI – fraude no pagamento por meio de cheque (inciso VI). No inciso
I está descrita a conduta daquele que “vende, permuta, dá em pagamento, em
locação ou em garantia coisa alheia como própria”.
[1].Obra
citada, página 331.
[2].
Obra citada, página 198 (itálico no original).
[3].
Obra citada, página 563.
[4].
Obra citada, página 262 (itálico no original).
[5].
Obra citada, página 435.
[6].
Obra citada, página 271 (itálico no original).
[7].
Obra citada, página 441.
[8].
Obra citada, página 620.
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