Pular para o conteúdo principal

A mentira no Código Penal - VI


Outro dos crimes contra o patrimônio em que há o emprego da mentira é a duplicata simulada, descrita no artigo 172: “emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade, ou qualidade, ou a serviço prestado”.  Segundo Damásio, “o conteúdo da duplicata, fatura ou nota de venda, para que exista crime, não deve corresponder à mercadoria vendida, m qualidade ou quantidade, ou ao serviço prestado. Entendemos que o tipo apresenta duas formas: inexistência de venda; inexistência de correspondência, quanto à qualidade ou quantidade, entre o conteúdo da duplicata etc. e a venda efetiva. No primeiro caso, a duplicata, p. ex., é absolutamente falsa, não correspondendo a nenhum negócio. No segundo, a venda existe, porém inexiste correlação, quanto à qualidade ou quantidade, entre o conteúdo da duplicata e o negócio efetivo. Ex.: o sujeito vende 20 e insere 200 no título. Nesse sentido: Celso Delmanto e Roberto Delmanto, Código Penal comentado, 3ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1991, pág. 316”[1].
                        Outro crime contra o patrimônio em que há o engano é o que tem o “nomen juris” de “fraude no comércio”, descrito no artigo 175 do Código Penal. O próprio nome já designa que há o emprego de mentira. A descrição típica é a seguinte: “enganar, no exercício de atividade comercial, o adquirente ou consumidor: I – vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; II – entregando uma mercadoria por outra”. E o parágrafo 1º está assim redigido: “alterar em obra que lhe é encomendada a qualidade ou o peso de metal ou substituir, no mesmo caso, pedra verdadeira por falsa ou por outra de menor valor: vender pedra falsa por verdadeira; vender, como precioso, metal de outra qualidade”. O verbo do tipo é enganar e nada é mais representativo da mentira do que esse verbo, pois através do engano a realidade é apresentada à vítima de forma distorcida. Para Mirabete, “necessário, porém, que haja fraude, que o agente ‘engane’ a vítima, descaracterizando-se o delito quando esta, ciente da falsificação, aceita a mercadoria; o tipo exige que se venda mercadoria falsificada como verdadeira[2].
                        Outro crime patrimonial em que há o emprego da mentira é o que o “nomen juris” de “outras fraudes”, cuja descrição típica está no artigo 176 do Código Penal: “tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. Comentando o artigo, assim se manifesta Delmanto: “delito de fraude que é  que é, visa à incriminação do agente que  que usa tais serviços sem ter recursos para pagá-los, mas apresentando-se como se os tivesse”[3]. Como se vê, a mentira é imprescindível à existência do tipo legal.
                        Também no crime denominado “fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações”, definido no artigo 177 do Código Penal. Diz o texto legal: “promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo”. Nos dizeres de Delmanto, “o crime é de informação falsa, praticável, alternativamente, mediante afirmação falsa ou ocultação fraudulenta de fato (omissivo ou omissivo)”[4]. Para Damásio, “o comportamento proibido consiste em fazer, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade ou ocultar, com fraude, fato a ela relativo”[5]. Para Mirabete, “no art. 177, são definidos vários tipos penais consistentes nas fraudes ou nos abusos da fundação ou na administração de sociedade por ações”[6]. Conforme o parágrafo 1º, “incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: I – o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedades por ações que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo; II – o diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de outros títulos da sociedade; III – o diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia geral; IV – o diretor ou o gerente que compra ou vende, por conta da sociedade, ações por ela emitidas, salvo quando a lei o permite; V – o diretor ou o gerente que, como garantia de crédito social, aceita em penhor ou em caução ações da própria sociedade; VI – o diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com o este, ou mediante balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios; VII – o diretor, o gerente ou o fiscal que, por interposta pessoa, ou conluiado com acionista, consegue a aprovação de contas ou parecer; VIII – o liquidante, nos casos dos nºs I, II, III, IV, V e VI: IX – o representante da sociedade anônima estrangeira, autorizada a funcionar no País, que pratica os atos mencionados nos nºs I e II, ou dá falsa informação ao Governo”. Observa-se que a mentira está presente nos incisos I, II, VI, VIII e IX, pela palavra sinônima “falsa”.


[1]. Obra citada, página 454.
[2]. Obra citada, página 303.
[3]. Obra citada, página 646.
[4]. Obra citada, página 649.
[5]. Obra citada, página 476.
[6]. Obra citada, página 307.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante