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A anistia do caixa 2 e a retroatividade da lei penal

 
            Não se fala de outro assunto: num projeto de lei em trâmite  no legislativo brasileiro, chamado de medidas de combate à corrupção, foi inserida uma emenda que anistia os fatos ocorridos anteriormente a ela. Causou indignação nas redes sociais, mas o deveria causar mais indignação é a falta de informação: no popular, a ignorância.
            A anistia é uma causa de extinção da punibilidade das mais antigas e uma das mais importantes, tendo uma história muito bonita. Ela surgiu como um “perdão” que era concedido pelo soberano àqueles que estavam cumprindo pena, ou seja, era dirigido a pessoas que haviam violado uma lei penal. Ganhando outros contornos, ela passou a ser reservada para extinguir a culpabilidade de fatos criminosos praticados num determinado momento histórico. E escapou das mãos do soberano, passando a ser lei votada pelas casas legislativas. Ele foi romanticamente comparada à pomba da paz que, depois de momentos atribulados, surge para apaziguar os ânimos, “perdoando-os”. Diz um autor brasileiro que ela joga o manto do esquecimento sobre esses fatos (a propósito: a palavra anistia é escrita em castelhano “amnestía”, em inglês “amnesty”, em que o “am” é uma negativa, semelhante à “amnésia”, ou seja, esquecimento).
            No Brasil houve várias leis de anistia, quase todas ligadas umbilicalmente a crimes cometidos durante períodos grave convulsão intestina (emprego esta expressão com receio...) A mais recente – nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) foi a que pretendeu “lançar o manto do esquecimento” sobre os fatos acontecidos pós 64, ou seja, durante a época do regime militar. Muitas pessoas foram anistiados, algumas com direito a receber indenização e um salário mensal, se bem que alguns estão hoje encarcerados, como é o caso de José Dirceu; outros estão em atividade, como é o caso de José Serra; e, finalmente, outros estão aposentados, como é o caso de Fernando Henrique.
            Apenas para reforçar: a anistia é uma lei que atinge fatos passados (redundante) e que violaram uma lei penal em vigor ao tempo em que foram praticados (isto é tão óbvio que quase sinto vergonha de dizer).
            De outra parte, está com todas as letras escrito na Constituição da República Federativa do Brasil que a lei penal não pode retroagir para prejudicar, efeito no jargão jurídico-penal chamado de “novatio legis in pejus” e isto também é muito óbvio.  A letra da lei (artigo 5º, inciso XL): “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (sobre este “benefício” retroativo, que é chamado “novatio legis in mellius falarei oportunamente).  A retroatividade (benéfica) da lei penal está regulamentada no artigo 107, inciso III: “pela retroatividade da lei penal que não mais considera o fato criminoso”.  Caso seja aprovada a lei em trâmite, ela jamais poderá retroagir para incriminar fatos anteriores... E como a anistia é uma causa extintiva da punibilidade, é evidente que ela deveria constar do Código Penal e consta: está elencada no artigo 107, inciso II, primeira figura.
            Pelo que foi exposto, principalmente dos termos empregados pela legislação, seja constitucional,, seja infraconstitucional, constata-se facilmente que a anistia somente pode alcançar fatos praticados num tempo em que eles eram definidos como delituosos, o que não é o caso da lei que está sendo votada no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados + Senado Federal), pois o “caixa 2” praticados durante as eleições não eram considerados em si mesmos criminosos.
            Assalta-me uma dúvida: será que a mídia não que inventou a tal “anistia” como ela habitualmente faz, inventando nomes, talvez pela ignorância, talvez para que leitores leigos melhor compreendam, tal como fez ao inventar os crimes de “pedofilia”, “formação de quadrilha”, “tráfico de influência” e outros tantos? Ou os nobres parlamentares estão, para garantia própria, criando (nova) modalidade de anistia?
            Fica a dúvida, porém algo é certo: não existe anistia para fatos que ao tempo em que foram praticados não estavam descritos numa lei penal.
           

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