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A idosa e o papagaio




      As piadas de papagaio sempre foram as mais picantes de todo o repertório brasileiro; em sua maioria, obscenas. Tornou-se um mote “a piada do papagaio” ou do “louro”, até que a Ana Maria Braga veio esculhambar com tudo, apresentando um papagaio de brinquedo, politicamente correto e com quem ela conversa, o nacionalmente famoso “louro José”. E, aqui, embora o título a tanto leve, não se trata de piada cujos personagens seriam uma idosa e um papagaio
      Por falar nisso: conhecem a piada do papagaio do carvoeiro? Mais tarde contarei.
      Pois é: aqui não será contada mais uma piada, mas relatado um fato que mais parece uma: chegou ao Superior Tribunal de Justiça um processo, em grau de recurso especial, em que se cuidou da (tentativa de) apreensão de um papagaio que convivia – digamos assim – com uma idosa havia 17 anos. Só pelo aspecto da convivência, se fosse entre humanos, configuraria uma união estável... Porém, a insensibilidade dos fiscais do IBAMA motivou-os a decretarem a apreensão do louro para devolvê-lo à natureza, ao seu habitat, contra o que a idosa insurgiu-se indo a façanha desaguar na Justiça. Se chegou ao STJ em grau de recurso especial significa que tramitou em primeira instância, havendo a interposição de recurso ao tribunal de justiça estadual (o fato ocorreu na Paraíba), e, depois, ao tribunal superior.
      Muitos dos que desconhecem a organização judiciária dirão aquela tradicional frase que bem mostra a ignorância: “não existe assunto mais importante para o STJ analisar”? Em primeiro lugar, enquanto existir uma escala de recursos à disposição dos litigantes, é lícito que eles os utilizem. Em segundo lugar: ponham-se no lugar da idosa de quem querem tirar o seu bicho de estimação há 17 anos. Poderia dizer ainda: ponham-se no lugar do papagaio...
      A título de esclarecimento, é de se registrar que o processo somente chegou ao STJ em virtude da teimosia do IBAMA que queria porque queria a apreensão do psitacídeo (o louro é da ordem dos “psittacidae”) para devolvê-lo ao seu habitat. Pergunto: depois de 17 anos ele teria as habilidades instintivas para sobreviver na natureza?
      Ah! a piada do papagaio do carvoeiro? Em outra oportunidade.
      Abaixo a decisão do STJ:
      Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.389.418 - PB (2013/0211324-4)
RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES
RECORRENTE : INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS
RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA
REPR. POR : PROCURADORIA-GERAL FEDERAL
RECORRIDO : IZAURA DANTAS
ADVOGADO : JOÃO DE DEUS QUIRINO FILHO - PB010520
DECISÃO
Vistos, etc.
Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, com base na alínea "a" do
inciso III do art. 105 da CF/1988, contra acórdão publicado na vigência do CPC de 1973, assim ementado:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL.
FISCALIZAÇÃO DO IBAMA. APREENSÃO DE AVE SILVESTRE
(PAPAGAIO). CONVÍVIO EM AMBIENTE DOMÉSTICO POR LONGO
PERÍODO. AUSÊNCIA DE SINAIS DE MAUS TRATOS. PRINCÍPIO
DA RAZOABILIDADE. PRECEDENTES.1. É consabido que a proteção
à fauna tem guarida constitucional (art. 225, caput e § 1º, VII, CF/88) e
que deve o Poder Público adotar medidas para impedir que esta seja
lesada, mormente coibindo o tráfico de animais silvestres, sendo
louvável, portanto, a atuação do IBAMA na adoção de providências
tendentes a proteger a fauna brasileira.2. Todavia, o princípio da
razoabilidade deve estar sempre presente nas decisões judiciais, já
que cada caso examinado demanda uma solução própria. Na
hipótese, embora existam sérios indícios de que a posse do papagaio
em questão, de fato, era irregular, já que a ora apelada não
demonstrou a existência de licença, autorização ou nota fiscal da
compra do animal que pudesse justificar a sua posse, verdade é que a
referida ave já estava em convívio com a família por longo período de
tempo, com claros sinais de adaptação ao ambiente doméstico.3.
Nessas condições, a reintegração da ave ao seu habitat natural,
conquanto possível, pode ocasionar-lhes mais prejuízos do que
benefícios, tendo em vista que o papagaio em comento, que já possui
hábitos de ave de estimação, convive há cerca de 15 anos com a
autora, uma senhora idosa de 75 (setenta e cinco) anos, o que
inviabiliza a sua separação da dona e da casa onde vive.4.
Precedentes do STJ (RESP 1084347, Min. HERMAN BENJAMIN, 2ª
Turma, DJE 30/09/2010) e desta Corte Regional (AC 473474, Rel.
Des. Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, 3ª Turma, DJ 25/08/2009
e APELREEX 8349, Rel. Des. Federal Geraldo Apoliano, Terceira
Turma, DJE 21/09/2010).5. Apelação e remessa oficial desprovidas.
(e-STJ, fl. 213)
Documento: 72580799 - Despacho / Decisão - Site certificado - DJe: 07/06/2017 Página 1 de 4
Os embargos de declaração interpostos foram rejeitados.
O recorrente salienta violação do art. 535 do Código de Processo Civil/1973, sob o argumento de omissão no julgado.
Aduz, ainda, ofensa aos arts. 333, I, do Código de Processo Civil/1973; 25, § 1º, 29, § 1º, III, da Lei n. 9.605/1998; 1º da Lei n. 5.127/1967 e 1.228 do Código
Civil, sob a alegação de que os animais silvestres mantidos em cativeiro irregular devem ser apreendidos para serem liberados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos.
É o relatório.
Os requisitos de admissibilidade do presente recurso especial foram
analisados com base no CPC de 1973, levando-se em conta o Enunciado Administrativo n. 2 do STJ.
O Tribunal a quo resolveu a controvérsia nos seguintes termos:
De fato, é consabido que a proteção à fauna tem guarida
constitucional (art. 225, caput e § 1º, VII, CF/88) e que deve o Poder
Público adotar medidas para impedir que esta seja lesada, mormente
coibindo o tráfico de animais silvestres. Louvável, portanto, a atuação
do IBAMA na adoção de providências tendentes a proteger a fauna
brasileira. Penso, contudo, que o princípio da razoabilidade deve estar
sempre presente nas decisões judiciais já que cada caso examinado
demanda uma solução própria. Na hipótese dos autos, verifico que
embora existam sérios indícios de que a posse, de fato, era irregular,
já que o possuidor, ora apelado, não demonstrou a existência de
licença, autorização ou nota fiscal da compra do animal que pudesse
justificar a sua posse, verdade é que a referida ave já estava em
convívio com a família por longo período de tempo, com claros sinais
de adaptação ao ambiente doméstico.
Nessas condições, parece-me que a reintegração da ave ao seu
habitat natural, conquanto possível, possa ocasionar-lhes mais
prejuízos do que benefícios. Consoante bem destacou o MM. Juiz a
quo, a manutenção do papagaio “Leozinho”junto à autora é medida
que se amolda perfeitamente ao princípio da razoabilidade, tendo em
vista que a apreensão do papagaio em comento, que já convive há
cerca de 15 anos com a autora pode ser por demais traumática tanto
para a sua dona, uma senhora idosa de 75 (setenta e cinco) anos,
como para o animal, que já possui hábitos de ave de estimação, o que
inviabiliza a sua separação da dona e da casa onde vive.
Como se verifica, não há falar em contrariedade ao art. 535 do Código de
Processo Civil, porquanto a matéria em exame foi devidamente enfrentada pela Corte de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, apenas não adotando as razões do recorrente o que não configura violação do dispositivo invocado.
Quanto ao mais, extrai-se da leitura do acórdão combatido que o tema
referente à legalidade da posse do animal teve amparo no princípio da
razoabilidade, considerando-se as peculiaridades do caso concreto. Logo, a reforma das conclusões tecidas na origem demandaria o revolvimento dos elementos fático-probatórios da lide, o que não se admite, consoante o enunciado
contido na Súmula 7/STJ.
Ademais, esta Corte Superior, em casos similares, já consagrou a aplicaçãodo princípio da razoabilidade. A propósito:
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA
PREVENTIVO. APREENSÃO DE PAPAGAIOS. AMBIENTE DOMÉSTICO.
POSSE POR MAIS DE DEZ ANOS. INEXISTÊNCIA DE MAUS TRATOS.
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
1. No caso, o Tribunal Regional, ao analisar o conjunto fático-probatório,
concluiu que a apreensão das aves não é razoável, pois acarretaria mais
prejuízo do que proteção. Assim, a alteração das conclusões adotadas pela
Corte de origem, tal como colocada a questão nas razões recursais,
demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório
constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o
óbice previsto na Súmula 7/STJ.
2. Ademais, esta Corte, já se manifestou pela aplicação do princípio da
razoabilidade em casos similares, relacionados a aves criadas por longo
período em ambiente doméstico, sem qualquer indício de maus-tratos ou risco
de extinção.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1.457.447/CE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 19/12/2014)
ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL. OFENSA AO ART. 535, II, DO CPC.
INOCORRÊNCIA. APREENSÃO DE AVE SILVESTRE. CONVIVÊNCIA POR
VINTE E DOIS ANOS. MANUTENÇÃO DA GUARDA. APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO.
I. Não há omissão no acórdão recorrido, quando o Tribunal de origem
pronuncia-se, de forma clara e precisa, sobre a questão posta nos autos,
assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão.
Precedentes.
II. O Tribunal a quo, soberano na análise do material cognitivo produzido nos
autos, entendeu que, em face das peculiaridades do caso concreto, deve ser
aplicado o princípio da razoabilidade, já que a ave convive com a recorrida há
mais de vinte e dois anos, está completamente adaptada ao convívio e
ambiente humanos, "sendo esse agora o seu verdadeiro habitat, afigurando-se
improvável o sucesso da reintrodução do pássaro no mundo selvagem".
Acrescentou, ainda, que a parte autora "adquiriu a ave antes do advento de
qualquer norma proibitiva, agindo, na época, em conformidade com a
legislação ambiental e com a cultura local" e, "após o advento da proibição,
procurou, de boa-fé, regularizar a sua situação perante o órgão ambiental,
quando, somente naquela ocasião, a autarquia teve conhecimento do suposto
ilícito"; e que "a relação de afeto entre a apelada e o animal já dura mais de 20
anos e consta nos autos informações de que o pássaro recebe um tratamento
adequado". Nesse contexto, a inversão do julgado exigiria, inequivocamente,
incursão na seara fático-probatória dos autos, inviável, na via eleita, a teor do
enunciado sumular 7/STJ.
III. Agravo Regimental desprovido.
(AgRg no AREsp 333.105/PB, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 21/8/2014, DJe 1º/9/2014)
Ante o exposto, com fulcro no art. 932, IV, do CPC/2015, c/c o art. 255, § 4º,II, do RISTJ, conheço em parte do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe provimento.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 5 de junho de 2017.
Ministro Og Fernandes
Relator
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