Na década de
90, a Assistência Judiciária da Procuradoria Regional de Campinas iniciou, por
assim dizer, uma parceria com o CAISM da Unicamp. Na realização de exames
pré-natais, sempre que era constatada uma má formação no feto que o tornava
inapto para a vida extra-uterina, a gestante era encaminhada à AJ para que
fosse feito pedido judicial de autorização para a interrupção da gravidez[1]. Ela
ali comparecia munida de todos os exames médicos, laudo psicológico, de
assistente social, prestava declarações, assinava uma autorização (se casada ou
amasiada, do marido ou companheiro) e tudo isso era protocolado, acompanhando o
pedido de autorização para interrupção médica da gravidez. Deferido o pedido,
era entregue um alvará à gestante, que retornava ao CAISM e ali tinha a
gravidez interrompida. Os pedidos, nem era necessário dizer, tinham prioridade
total no processamento: durava em média três dias.
A partir de
uma certa época, já nos anos 2000, os pedidos passaram a ser feitos por mim,
como uma decorrência lógica: eu atuava na Vara do Júri e era essa vara a competente
para julgar o pedido, pois ali eram – e são – julgados os crimes dolosos contra
a vida, como o aborto o é. Nenhum
requerimento foi negado até no ano de 2005. Nesse ano, estive em gozo de
licença-prêmio no mês de novembro e, ao retornar, o colega que me substituiu
nessa atividade informou-me que um pedido fora negado por uma Juíza Substituta
que estivera judicando na Vara do Júri. O feto padecia de hidranancefalia[2] –
além de não ter o encéfalo, havia somente água no crânio. Perguntei ao meu
colega quais as providências que ele havia tomado ante o indeferimento e ele
respondeu que havia convocado a gestante e seu companheiro e comunicado o
indeferimento do pedido. Nada além disso. Entregou-me todos os papéis
referentes ao caso, inclusive a cópia da sentença.
Imediatamente,
elaborei uma ordem de “habeas corpus”, com pedido de liminar, endereçada ao
Tribunal de Justiça de São Paulo e, numa quinta-feira apanhei o “Cometão” – às
minhas expensas – para ir protocolá-lo. Tinha certeza de que o pedido de
concessão de medida liminar seria indeferido. Em primeiro lugar, porque esse
tribunal não era nada afeito à concessão de liminares em pedidos de “habeas
corpus” – era um verdadeiro tabu e somente uma pessoa havia até então
conseguido uma liminar: o político Paulo Salim Maluf. Em segundo lugar, pelo
fato envolver aborto, tema que sempre provoca calafrios e discussões. Na
terça-feira seguinte o “site” do Tribunal apontava o indeferimento e a
justificativa para indeferi-lo foi ridícula: não havia “periculum in mora”. Em
outras palavras: a gestante poderia esperar pelo julgamento de mérito (que certamente
ocorreria após ela dar à luz...).
Elaborei
outro pedido de “habeas corpus”, desta vez endereçado ao Superior Tribunal de
Justiça, em Brasília, também com pedido de concessão de medida liminar. Estava
temeroso num ponto: de que fosse aplicada uma súmula do Supremo Tribunal
Federal, a de número 691[3],
mas, apesar disso, remeti o pedido por “fax”. Nesse mesmo dia, fui, acompanhado
de minha mulher, almoçar com um padre, amigo nosso, para comemorar
antecipadamente o Natal. Durante o almoço no restaurante, soou meu aparelho
celular e o número que chamava era desconhecido. Contra a minha vontade (sou
inimigo do uso de telefone celular em restaurantes, cinemas e, principalmente,
em sala de aula; nas minhas aulas, é proibido até o toque do aparelho), atendi:
era o marido da gestante. Perguntei inicialmente quem havia fornecido o número
e ele respondeu que fora uma repórter; em seguida, disse que o estado de saúde
de sua mulher estava piorando (a gravidez ultrapassava os 7 meses), pois o
acúmulo de água fazia com o crânio do feto inchasse, aumentando a pressão
arterial da mulher; para melhorar o estado de saúde era necessário fazer
punções, o que importava em sofrimento; tudo isso, afinal, implicava em risco
para a saúde da gestante. Respondi que, se ele levasse à AJ um laudo médico do
CAISM, naquela mesma tarde eu protocolaria no fórum outro pedido, desta vez com
fundamento diverso: risco à vida da gestante.
Pouco antes
das 17:00 horas ele levou o novo laudo médico; o pedido praticamente já estava
pronto, faltando apenas colocar o diagnóstico; após encerra-lo, levei-o
correndo ao fórum e expliquei à Juíza Substituta, que era outra, que aquele
pedido não era mera reiteração do primeiro, já que o fundamento era novo: não
mais a hidranancefalia, mas sim o risco à vida da gestante.
Depois de
vinte e quatro horas a liminar foi concedida; no dia seguinte, antevéspera do
Natal, o “site” do Superior Tribunal de Justiça trazia entre as notícias mais
relevantes, a concessão, pelo Ministro Presidente, de medida liminar em pedido
de “habeas corpus” para que fosse interrompida a gravidez de um feto
hidranancefálico. Foi a primeira vez que o STJ concedeu uma medida liminar para
essa finalidade.
O fato ganhou
repercussão internacional, em virtude do seu aspecto inusitado; ademais, por
falta de uma liminar, a gestante passou a ter duas e pôde, finalmente, encerrar
aquele pesadelo.
[1] . O Código Penal autoriza
o aborto apenas em duas situações: quando a gravidez resulta de estupro (e é
necessária autorização da gestante, ou de seu representante legal) ou a
gravidez resulta perigo para a vida da gestante (neste caso, não é necessária a
autorização da gestante). Nestas duas hipóteses, não é necessário pedido
judicial. No caso de feto com má formação (e são várias: anancefalia, agenesia
– ausência de rins -, por exemplo), porém, como não há previsão legal, é
necessária a autorização judicial. Nos
[2] . É diferente de
hidrocefalia: esta ocorrência não torna o feto inviável para a vida
extra-uterina.
[3] . “Não compete ao Supremo
Tribunal Federal conhecer de ‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do
Relator que, em ‘habeas corpus’ impetrado a tribunal superior, indefere a
liminar.”
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