Naqueles
tempos, final dos anos oitenta e início dos anos noventa, havia na região de
Campinas poucos presídios, e na cidade uma cadeia pública, definidas esta certa
ocasião, numa sentença criminal, como “mero depósito de homens”. A cadeia
pública localizava-se na Rua Sebastião de Souza, 150, esquina com a avenida
Andrade Neves. Depois, foi construída a cadeia do São Bernardo, Rua João
Batista Morato do Canto, 100. E era comum a ocorrência de homicídios no
interior dessas cadeias.
Eu o conheci
quando assumi a sua defesa pela PAJ e ele era acusado de um crime de homicídio
cometido no interior de uma das celas da então cadeia do São Bernardo
(posteriormente presídio masculino, e mais tarde presídio feminino). Um dos
“moradores” daquela cela apinhada (inicialmente construídas para acomodar oito
presos, nelas eram amontoados vinte e dois, vinte e quatro) havia sido morto e,
quando foi indagado quem o havia matado, Iran apresentou-se como o autor da
morte. A sua versão era de que havia sido agredido e, reagindo àquela agressão,
matara o agressor. O laudo médico-legal apontou diversos ferimentos provocados
por “instrumentos contundentes”, ou seja, socos e pontapés. Impossível que
somente ele houvesse provocado todas as lesões. Tudo indicava que muitos
“moradores” – se não tivessem sido todos – daquela cela haviam praticado o
crime e que Iran havia sido “escalado”, como era de hábito, para assumir a
autoria. Mas, para mim ele afirmou e reafirmou que houvera sido obra somente
sua.
Durante a
instrução, ao ser trazido ao fórum para participar de uma audiência, ele pediu
ao escrevente da Vara do Júri que entregasse uma carta à sua mulher, que ali
estava para, ainda que fosse à distância, vê-lo. O funcionário forense,
fingindo aceitar o encargo, abriu a carta, leu-a e entregou-a ao membro do
Ministério Público, que requereu a sua “juntada” aos autos. A carta não
continha – e nem poderia conter – nada prejudicial, pois ele admitia ser o
autor daquela morte. Se ele dissesse na missiva que fora apenas um dos
participantes ou que a morte houvesse sido provocada pelos demais presos, isso
não o prejudicaria – a não perante os demais detentos e apenas quando eles
tomassem conhecimento dessa delação.
Iran foi
pronunciado. No dia da sessão de julgamento, seguindo estritamente o que dispõe
o Código de Processo Penal, tão logo foi feito o anúncio do julgamento (na
dicção da lei, “pregão”) pedi a palavra e argüi a nulidade do processo pela
produção de prova ilícita, consistente na violação do sigilo de
correspondência. Durante a minha curta manifestação, requeri a que fosse
requisitada a instauração de inquérito policial para apurar a autoria daquele
crime contra o sigilo das comunicações. A Promotora de Justiça estampava no
rosto a sua perplexidade; o escrevente, autor da façanha, estava encolhido em
sua cadeira, ao lado do magistrado. Registrado nos autos o meu inconformismo,
procedeu-se ao julgamento do acusado. A minha tese, obviamente, pois isso era o
que réu afirmava, foi a de legítima defesa: por apertados quatro votos a três
os jurados acolheram a tese e absolveram Iran.
O tempo
passou. Fui designado para um cargo administrativo, o de Coordenador da
Assistência Judiciária nos Presídios da região de Campinas. A coordenação
compreendia os presídios Ataliba Nogueira, Penitenciárias I e II, Casa de
Detenção Campinas-Sumaré e Presídio do São Bernardo (este, depois de muitos
pedidos, havia deixado de ser cadeia pública). Era a época dos “pagers”. O meu
soou com um recado para ligar para um determinado número de telefone. Fiz a
chamada. A pessoa do outro lado da linha dizia ser cunhado de Iran: ele estava
novamente preso no São Bernardo, desta vez acusado de haver participado de um
roubo cinematográfico a uma agência bancária na cidade de Morungaba, inclusive
com morte. Havia ocorrido uma fuga em massa dos presos daquele estabelecimento
carcerário, liderados por Iran, que portava um revólver. Após dominar os
agentes penitenciários, numa fuga estilo “cavalo doido” (em que os presos saem
em desabalada carreira), vários presos escaparam; quase todos foram
recapturados, inclusive Iran. Não fui vê-lo.
Dias após,
recebi uma chamada do Delegado de Polícia que presidia o inquérito instaurado
para apurar a fuga e em especial para investigar quem havia fornecido a arma de
fogo. Disse-me o Delegado (que fora meu aluno na Faculdade de Direito) que Iran
estava disposto a dizer o nome da pessoa que lhe fornecera a arma de fogo, mas
somente se eu estivesse presente. Concordei. Na sala estavam o Delegado de
Polícia, um Promotor de Justiça, eu, Iran e a escolta. Para surpresa de todos ele
disse que quem havia fornecido a arma fora um agente penitenciário. A
negociação tinha se iniciado com a “compra da fuga”: por dez mil dólares o
agente permitiria que ele escapasse. A quantia foi paga pela mãe de Iran e a
fuga nunca era facilitada, sob a desculpa que não tinha como convencer os
demais membros da equipe a permitir a fuga (talvez não quisesse repartir a
quantia...).
Propôs
transformar a obrigação de abrir as portas pela de fornecer uma arma de fogo;
aceita a proposta, a arma foi fornecida e empreendida a fuga, frustrada para
Iran.
Ambos foram
processados, o preso por fuga de presos; o agente penitenciário, por corrupção
passiva. Foram ambos condenados: ao funcionário público, além da pena privativa
de liberdade, foi decretada a perda do cargo que ocupava como efeito da
condenação.
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