1. Introdução
Durante
algum tempo houve tentativas
de classificar como
dolosas – com dolo
eventual – as mortes
(bem assim as
lesões corporais)
ocorridas em acidentes
no trânsito, quando
a) o motorista causador
do evento está embriagado
ou b) está dirigindo em velocidade excessiva (ou
ambas as hipóteses). A velocidade excessiva por
vezes verificava-se em disputas
automobilísticas, vulgarmente chamadas de “racha”, não se descartando que o condutor
esteja embriagado nessa oportunidade. Em
geral, a denúncia
era oferecida pela
prática do crime
de homicídio (ou
de lesões corporais)
com dolo eventual, mas também em geral no momento
da sentença de pronúncia
o fato era
desclassificado para
a forma culposa.
Se a modificação não
se desse no momento da pronúncia (em que se operava a desclassificação – artigo 419 do Código de Processo Penal), ela
ocorria no julgamento do recurso
no sentido estrito.
Raras vezes a desclassificação era operada pelos
jurados, em
plenário, o que acontecia quando não havia a interposição do recurso
ou este
era julgado improcedente.
Nos tempos presentes, o Supremo
Tribunal Federal tem classificado as mortes em “rachas” automobilísticos como fatos
dolosos – com dolo eventual.
Aqui serão abordadas as mortes
ocasionadas em “rachas automobilísticos”.
2. Homicídio
Derivada de “hominis excidium” ou “hominis occidium”, o fato
de tirar a vida
de outrem é punido desde
sempre. Uma definição
antiga do delito
de homicídio cunhada
por Francesco Carrara diz que é “la muerte de um
hombre cometida injustamente por outro hombre”[2]. Embora exista no conceito
referência à “injustiça”
da ação (e do resultado,
por consequência), ela
é silente a respeito da vontade de tirar a vida de alguém
no homicídio. O sumo
mestre de Pisa,
todavia, abordava em
seu “Programa”
o conceito de dolo,
bem assim o
de culpa.
Como
maciçamente entende a doutrina, o homicídio é um crime
material, instantâneo
de efeitos permanentes,
unissubjetivo, plurissubsistente, e, o que
importa agora, de forma
livre[3]. Isso significa dizer que pode ser cometido por qualquer forma que a imaginação do sujeito ativo eleger, desde que, evidentemente, seja eficaz[4].
Sendo um crime
que pode ser
cometido por qualquer
forma, o veículo automotor
poderá ser utilizado na sua
prática.
O homicídio está definido no Código
Penal no artigo 121, “caput”, com uma das mais simples expressões do tipo
legal, o verbo e o seu objeto: “matar alguém”. A pena cominada é a de reclusão,
de 6 a 20
anos. Trata-se de homicídio simples. Há, ainda, a figura do homicídio
privilegiado, definida no parágrafo 1° desse artigo: “se”. Há, também, as
figuras do homicídio qualificado, nos vários incisos do parágrafo 2°; como
exemplo, o qualificado pelos motivos, que podem ser o fútil e o torpe. No
“caput”, bem como nos parágrafos, o homicídio é doloso. Depois há a figura do
homicídio culposo, em que há, como é cediço, expressa referência à culpa;
nota-se, desde logo, a fundamental diferença entre a pena cominada ao doloso e
o culposo, seja pela espécie de pena – reclusão, para o doloso, detenção para o
culposo[5],
seja pela quantidade de pena.
No ano
de 1995 foi sancionada a lei que criou os Juizados
Especiais Cíveis
e Criminais (lei n° 9.099) e classificou
como infrações
penais de menor
potencial ofensivo
os crimes e contravenções
“a que a lei
comine pena máxima
não superior
a um ano”[6],
permitindo para esse
tipo de infração
penal a “aplicação imediata
de pena restritiva
de direitos ou
multa” – artigo
76, chamada de transação penal. Entendendo-se as lesões
corporais ocorridas em
acidentes no trânsito
como culposas, elas
eram abrangidas por essa lei, permitindo-se a transação. Essa mesma lei
instituiu a suspensão processual (uma expressão do “probation”, ou
“sursis” anglo-norte-americano), cabível nos casos em que a pena mínima cominada fosse igual
ou inferior
a 1 ano: satisfeitos
os requisitos legais,
o processo ficaria suspenso por
um período de
2 a 4 anos (artigo
89). Entendendo-se o homicídio ocorrido
no trânsito como
culposo, cabia a suspensão
processual. Essa modificação foi vista como um abrandamento do rigor punitivo:
não seria sequer processado o sujeito ativo de um crime “de trânsito”.
Desde
o ano de 1997 há no Brasil um Código (Brasileiro)
de Trânsito (Lei
n° 9.503, de 23 de setembro), em que se
estabeleceu a punição às mortes e lesões
corporais ocorridas especificamente no trânsito, retirando-as, portanto,
pelo princípio
da especialidade, do alcance Código Penal. Essa lei
foi fruto de um
entendimento de que
as penas cominadas ao homicídio culposo
e à lesão corporal
culposa no Código
Penal eram muito
brandas: para o homicídio
culposo, de 1 a 3 anos
de detenção; para
a lesão corporal
culposa, de 2 meses a 1 ano de detenção,
alcançados, como se viu, pela lei dos juizados especiais
criminais. O homicídio culposo e a lesão
corporal culposa,
ocorridos na direção de veículo
automotor, passaram a ser
resolvidos pela nova
lei, com
penas sensivelmente maiores:
ao homicídio culposo
foi cominada a pena de detenção, de 2 a 4 anos
– não mais
podendo ser concedida a suspensão
processual; para a lesão
corporal, de 6 meses a 2 anos de detenção
– não cabendo mais
a transação penal
e sim somente
a suspensão processual.
O homicídio
doloso continuou a ser
alcançado pelo contido no Código
Penal. Não
se exclui a possibilidade de que um homicídio doloso (simples,
privilegiado ou qualificado) possa ser cometido utilizando-se um
veículo automotor
como instrumento, pois, como já se viu,
é crime de forma livre.
[2] . Programa de Derecho Criminal, Parte especial, volume
I, tradução de José J. Ortega Torres e Jorge Guerrero, Temis, Bogotá, 1957, n°
1.087, página 45.
[3] . O
antônimo dessa classificação é o de forma vinculada, ou seja, o tipo penal que
vincula a realização do fato a uma forma de conduta. Como exemplo há o crime de
perigo de contágio de moléstia venérea, artigo 130 do Código Penal: “expor
alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de
moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”.
[4] . Se não
for eficaz o meio, poderá ocorrer crime impossível, pela ineficácia absoluta do
meio, artigo 17 do Código Penal.
[5] . Quando
o código foi decretado (Decreto-lei n° 2.848, de 28 dezembro de 1940, com
entrada em vigor a 1º de janeiro de 1942), havia diferença de cumprimento entre
a reclusão e a detenção: aquela era cumprida com rigor carcerário e em etapas;
ao passo que esta não seguia esse rigorismo.
[6] . Pela
lei n° 11.313, de 28 de junho de 2006, foi esse preceito modificado, aumentando
para 2 anos o máximo de pena cominada.
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