Tão
logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na
Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo
desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na
avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua
localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da
2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos
Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um
casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas
necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes.
Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma
feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências
foi uma forma de “saída temporária”.
Antes
da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram
“acomodados” numa cadeia que se situava num prédio nas esquinas da avenida
Andrade Neves com a rua Sebastião de Souza e a entrada era por esta via pública
onde hoje funciona o 1° Distrito Policial. Tive a oportunidade de entrar nesse
estabelecimento somente uma vez quando ainda era estudante e trabalhava no 3°
Cartório Criminal da comarca de Campinas – portanto, entre os anos de 1974 e
1975. Minha ida ao local deu-se por motivo afetivo-social: um amigo havia sido
preso pelo crime de porte de entorpecente (sim, naquela época não havia
distinção entre usuário e traficante, sendo a mesma pena reservada a ambos;
posteriormente, a “lei de entorpecentes” sofreu diversas alterações, inclusive
algumas totais, com nova lei, e o crime de porte de entorpecente para uso
próprio é quase não punido). O que vi nesse “presídio” me deixou estarrecido,
pois, conhecendo o fenômeno apenas pelos livros de Direito Penal, imaginava que
tais estabelecimentos eram como aqueles descritos nos compêndios: limpos,
poucos presos, tudo muito organizado. Ao contrário do que os compêndios
descreviam, o que vi ali foram presos amontoados, sujo, e um odor
característico que depois descobri era comum a todos: cheiro de suor humano e
comida estragada. Aqueles presídios que eram vistos em filmes eram uma obra de
ficção frente aos brasileiros.
Voltando
ao ano de 1977 e ao PAR – Programa de Ajuda ao Reeducando[1]
-, desenvolvi durante um tempo alguns trabalhos “pro bono” para alguns
detentos, prestei concurso público para o cargo de Procurador do Estado e,
aprovado, me vi obrigado a afastar-me dessa atividade, pois, nomeado, fui
trabalhar numa área completamente diferente – execução fiscal – e fora da
comarca de Campinas. No ano de 1983 voltei a Campinas e numa função que me
agradava muito e pela qual ansiava: atuar na área da assistência judiciária[2],
ou seja, prestar serviços jurídicos a pessoas carentes. Iniciei as minhas
atividades na área cível (separações, alimentos, despejos) e em seguida fui
trabalhar no “cadeião do São Bernardo”: ali houvera uma rebelião (voltarei ao tema) com
mortes e a pauta de reivindicações dos revoltosos tinha como primeiro item a
designação de advogado para prestar-lhes assistência jurídica. Expedido ofício
à Procuradoria para a designação de alguém para esse trabalho, fui consultado
se, sem prejuízo das minhas atribuições, o assumiria. A partir de então passei
a comparecer duas vezes por semana naquele local, utilizando a “carceragem”
como “escritório”, onde eu atendia os encarcerados que precisavam de
assistência judiciária. Eu tinha dois auxiliares, Paulo, um descendente de
japoneses que fora condenado por latrocínio[3],
e um ex-PM, que fora condenado por diversos roubos a bancos.
A
arquitetura do prédio era das mais simples: um retângulo com duas alas (A e B)
e 34 celas (“xadrezes”), cada um com seis “camas” (catres, na realidade)
chumbados na parede: teoricamente, em cada unidade “morariam” (como os presos
diziam) seis detentos, mas na prática eram confinados 18 ou mais. O “banho de
sol” era alternado entre as alas: no período da manhã a ala A e no da tarde a
B, invertendo-se depois de um certo tempo. Havia, ainda, uma ala superior, bem
menor do que as do piso térreo, e durante um tempo, antes de que eu assumisse
ali os trabalhos, foi utilizada como um presídio feminino. Uma das ocorrências que
talvez levaram à desativação foi a gravidez de uma detenta não se apurando quem
foi o autor da façanha. Depois de desativado, passou a ser a “ala do seguro”,
local em que ficam os presos que se incompatibilizaram com os demais ou
cometeram certos crimes (estupro, feminicídio).
Durante
o tempo em que ali permaneci presenciei todas as mazelas que aconteciam em
todos os presídios do Brasil, quiçá do mundo[4]:
lesões corporais (“agressões”), estupros[5],
e homicídios, vários homicídios. Quando assumi o trabalho da PAJ Criminal na
Vara do Júri de Campinas, afastando-me desse trabalho, em meados da década de
80, atuei na defesa de alguns desses acusados[6].
A
agressões sexuais eram uma constante e a que mais me chamou a atenção (um ponto
fora da curva, na expressão atual) foi de um detento que teve todos os pelos do
corpo raspados com um barbeador para melhor parecer-se com uma mulher. Entre os
catres os detentos colocavam uma cortina, significativamente chamada “come
quieto”. Os estupros dificilmente eram comunicados: uma das “leis” da prisão é
o silêncio e quem fala pode sofrer consequências ainda maiores – talvez a
morte.
Na
década seguinte, de 90, houve a construção de alguns presídios na divisa entre
Campinas, Sumaré e Hortolândia, que teve início na verdade no ano de 1986,
sendo Franco Montoro o governador do estado, com a unidade Ataliba Nogueira[7],
inicialmente um presídio de segurança máxima, depois transformado em
semiaberto. Em seguida, foi construída a Casa de Detenção Campinas-Sumaré,
depois a P-I, a P-II e dois Centros de Detenção Provisória. Com a existência de
quatro unidades carcerárias – Ataliba Nogueira, P-I e a P-II (ademais, havia o
“cadeião” do São Bernardo). Quando foi atingido o número de quatro presídios
naquela região (Ataliba, P-I, P-II e Casa de Detenção), foi criado um complexo
penitenciário, chamado Campinas-Sumaré, e, em seguida, foi criada uma
Coordenadoria de Assistência Jurídica para ali atuar e que seria coordenada por
um Procurador do Estado a quem estariam afetos os advogados da Fundação de
Amparo ao Trabalhador Preso (Fundação Manoel Pedro Pimentel[8]
), e, como o cumprimento do destino, fui designado para o cargo. E aí começou o
meu trajeto por presídios de verdade, alguns dos quais poderiam ser
classificados como “de segurança máxima” e indo além: nessa época foram criados
no estado de São Paulo o RDE e o RDD, aos quais os presos se referiam como
“cadeia da cadeia”.
[1] .
Talvez essa tenha sido a primeira vez que a palavra “reeducando” tenha sido
oficialmente utilizada: hoje ela consta da Lei de Execução Penal. E há uma
explicação para ela: é que uma das finalidades da pena é reeducar (a outra é
punir).
[2] .
Pode-se dizer que ela foi o “embrião” da Defensoria Pública.
[3] .
Roubo seguido de morte: artigo 157, parágrafo 3°, do Código Penal. O morto em
questão era um irmão de Paulo, que o auxiliava na empreitada criminosa, e que,
por erro na execução, foi atingido na cabeça por um projétil disparado por
Paulo.
[4] .
Uma série de televisão, produzida e exibida pelo canal HBO, mostra bem todas
essas mazelas: The night of (disponível no NET-NOW até 15/2/17.
[5] .
Naquela época, só impropriamente se dizia que um homem era estuprado: se ele
fosse vítima de “violência sexual”, ou seja, conjunção anal ou sexo oral, o
crime era de atentado violento ao pudor, artigo 214 do Código Penal.
[6] .
Alguns tornaram-se capítulos do meu livro “Casos de júri e outros casos”, como,
por exemplo “Iran” (página 111).
[7] .
Ele foi advogado, professor e deputado federal.
[8] .
Manoel Pedro Pimentel foi advogado, juiz do Tribunal de Alçada Criminal,
Secretário da Justiça – neste cargo, incrementou a criação de
prisões-albergues, inclusive uma em Campinas.
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