Ele era
motorista de um deputado estadual que morava em Campinas; ambos eram
evangélicos. Não somente transportava o deputado, como – o que, infelizmente, é
muito comum neste país – todos os membros de sua família, inclusive um filho
que era ainda criança. O motorista era de plena confiança de toda a família;
frequentavam a mesma igreja.
Um dia, o
garoto contou à mãe que o motorista havia praticado atos sexuais com ele; repetiu
a história ao pai. O fato configurava atentado violento ao pudor[1]. Imediatamente, foi contratado um advogado
criminal (pois se trata de ação penal privada exclusiva – quando a vítima pode
arcar com os custos de um processo), foi instaurado inquérito policial (o
próprio Delegado Regional de Polícia comandou as atividades policiais), o
inquérito foi distribuído à 1ª Vara Criminal e o motorista foi denunciado e
iniciou-se o processo. Foi requerida, tanto pelo Delegado quanto pelo Promotor
a prisão preventiva do acusado, porém o Juiz de Direito preferiu não
decretá-la.
A defesa foi
feita por uma colega, que, após a instrução criminal, faleceu. Sobreveio
sentença condenatória, com todas as agravantes e causas de aumento possíveis.
Agravou-se a pena porque a vítima era criança – mas esta circunstância não
poderia ser levada em conta porque já fora utilizada para a presunção de
violência; aumentou-se a pena porque teria sido mais de um ato libidinoso;
enfim: na soma total, superava os quatro anos e oito meses e o regime prisional
inicial fixado era o fechado (a quantidade de pena – entre quatro e oito anos –
permitia que o regime inicial fosse o semi-aberto: colônia penal agrícola,
industrial ou similar). O juiz, perdendo a imparcialidade, ofendeu o acusado na
sentença. Permitiu-se apenas que ele recorresse em liberdade.
Ele
procurou-me na Assistência Judiciária; atendi-o. Conversamos. Tinha uma forma
pausada e calma de expressar-se. Contou mil histórias. Negou os fatos. Afirmou
que era perseguição. Ocorre que havia as declarações firmes da vítima (o
depoimento infantil é um dos temas mais polêmicos do Direito Processual Penal,
porque a criança geralmente tem a mente povoada de fantasias) e nada indicava
que ela estivesse mentindo.
Interpus o
recurso de apelação, pedindo obviamente a absolvição do acusado;
subsidiariamente, que a pena fosse diminuída, afastando-se principalmente o
“bis in idem” da dupla valoração da idade da vítima. O Tribunal de Justiça deu
provimento parcial à apelação: diminuiu a pena para 3 anos e 6 meses de
reclusão e fixou o regime aberto para o cumprimento (até 4 anos cabe a fixação
desse regime).
O agora
condenado foi à AJ agradecer-me, o que é raro. Mais raro ainda, levou-me um
presente: uma bíblia com uma emocionada dedicatória por ele escrita.
O caso não
terminou aí. O parlamentar elegeu-se deputado federal – era quase um cacique
político na região. Seu nome foi delatado a uma CPI por sua própria mulher.
Para escapar da inimente cassação, Ele renunciou. Separam-se. Ela foi morar em
outro país. Ele ficou aqui com os filhos. Atuando perante a 1ª Vara Criminal,
certa, como fazia, fui olhar a pauta de audiência: ali estava o nome do
ex-parlamentar, na condição de “autor do fato” em um “TCO” (termo
circunstanciado de ocorrência): ele havia dado uns “sopapos” naquele mesmo
filho e uma tia levou o jovem – já aproximando-se da maioridade penal – ao
plantão policial, onde se lavrou o TCO e o rapaz foi submetido a exame de corpo
de delito. As lesões foram levíssimas.
Era
necessária uma manifestação de vontade, chamada “representação”, para que o
autor do fato fosse processado. Como representante legal da vítima seria o pai,
impossibilitado porque era o autor; ou a mãe, impossibilitada porque estava no
exterior; coube a mim, como defensor público e na condição de curador especial
ao ato decidir se ele seria processado ou não: olhando ambos conversando
animadamente no corredor do fórum, entendi que seria melhor não permitir que o
processo criminal fosse adiante, pois isso poderia representar a abertura de
uma chaga que já estava – aparentemente – cicatrizada. Optei por não apresentar
a representação, o que provocou o arquivamento do TCO.
Ele livrou-se
desta vez também.
[1]
. Artigo 213 do Código Penal: “constranger alguém, mediante o emprego de
violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato
libidinoso diverso da conjunção carnal”; a pena cominada naquela época era de 3
a 6 anos de reclusão; hoje, é de 6 a 10 anos de reclusão. Ademais, a violência
prevista pelo dispositivo legal era – e ainda é – presumida quando a vítima não
é maior de 14 anos.
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