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O nadador americano campeão da mentira



      Os Estados Unidos da América têm uma firme tradição na natação: é de lá que são Mark Spitz e Michael Phelps, dois eméritos ganhadores de medalhas. É de lá também Ryan Lochte, que veio, nessa modalidade olímpica, representar o seu país. Por um lado, representou bem; por outro, mostrou-se um desastre. Já com a sua participação nos jogos olímpicos encerrada, meteu-se numa confusão tola e, para safar-se, simulou haver sido vítima de um crime de roubo com emprego de arma. Como tal acontecimento mancharia a organização da olimpíada e, como não reconhecer, do próprio país que a sedia, a polícia “mergulhou de cabeça” na apuração do episódio e concluiu que tal crime patrimonial contra ele nunca ocorreu. Vale destacar que o seu fantasioso enredo tinha desde logo um detalhe que se mostrava inverossímil: o roubador havia apontado a arma para a sua cabeça e o mandado pôr-se de joelhos, não tendo ele obedecido. Se tal tivesse mesmo ocorrido, ante a sua recusa ele teria sido sumariamente fuzilado: é que relatam todas as ocorrências do gênero.
      As investigações concluíram, com os depoimentos de dois outros nadadores da equipe, que, após vandalizarem – não se sabe a que título – um posto de gasolina e serem contidos por um segurança particular armado, tendo concordado em pagar o prejuízo (100 reais e mais 20 dólares), ele, Ryan, criou a fantasiosa versão. Tal fato constitui perante o Direito Penal brasileiro um crime contra a administração pública, mais especificamente um  delito contra a administração da justiça, com a denominação de “comunicação falsa de crime ou contravenção”, descrito no artigo 340 do Código Penal, com a seguinte redação: “provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado”, com a pena de detenção, de 1 a 6 meses, ou multa. Pela quantidade de pena – 1 a 6 meses – é abrangido pela lei n° 9.099/85, a que instituiu o Juizado Especial Criminal, tratando-se de infração penal classificada como de menor potencial ofensivo. Nessa espécie de infração, se o apontado autor do fato, acompanhado de advogado, concordar com a imediata imposição de pena, esta deverá ser sempre ser uma restritiva de direitos, tal como a prestação de serviço à comunidade, podendo consistir na doação de uma cesta básica a uma instituição de caridade - qualquer outro tipo de doação, valendo a pecuniária. O fenômeno da aceitação chama-se transação penal. Todavia, se ele tivesse acusado alguém pela prática do roubo que não ocorreu, o crime seria muito mais grave e não abrangido pela lei do juizado especial criminal: denunciação caluniosa.
      Pelo que se apurou até agora, ele (e nenhum dos outros três nadadores) não comunicou o inverídico fato à autoridade, provocando assim a sua atividade. Esta discussão poderia ser encetada durante o processo; porém, quando a pessoa aceita a transação penal não há processo, sendo os autos arquivados.
      Pela lei penal brasileira, ele se safou (ou safará) quase incólume; o mesmo não se poderá dizer quanto ao que lhe acontecerá em seu país como consequência de seu impensado ato. Os norte-americanos têm um apego muito grande à verdade, como parte de sua cultura, o que pode ser observado no sistema judicial de lá comparado com o daqui. Lá, o acusado não é obrigado a “depor”: porém, se o quiser, deverá prestar o compromisso (juramento) de dizer a verdade. Aqui, o acusado é obrigado, em tese, a “depor” (o termo correto é “interrogado”), podendo, entretanto, preferir exercer o direito de permanecer em silêncio. Melhor detalhando: no Brasil o acusado sempre deve comparecer perante o juiz para ser interrogado e antes que se inicie este ato judicial, ele é informado que não está obrigado a responder as perguntas que que lhe forem formuladas e que o seu silêncio não o prejudicará. Caso opte por responder às questões, poderá mentir o quanto quiser: há muitos anos o “príncipe dos penalistas brasileiros”, Nelson Hungria, dizia que "o direito de defesa compreende o direito de mentir”.
      Por ter mentido, a maior punição que o nadador poderá receber será a perda de patrocínio, que, conforme a mídia informou, ascende a mais de 16 milhões de dólares ao ano.     

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