Pular para o conteúdo principal

Depois da punição


 

     Tendo atuado décadas como defensor público, pois não existia a Defensoria Pública e a assistência jurídica aos necessitados era feita pela Procuradoria Geral do Estado, mais especificamente pela Procuradoria de Assistência Judiciária, me foi possível não apenas atuar na defesa do acusado, como, também, em algumas ocasiões, encontrar o réu. Encontrava-o depois de cumprir a pena, no caso de condenação, bem como o encontrava em casos de absolvição. Esses encontros geraram situações, às vezes, histriônicas.
      Um desses casos, e que, por suas nuances, ficou gravado na minha memória foi o de um réu que tinha nome de apóstolo, João Batista[1], contra quem pesava a acusação de haver matado, com diversos golpes de faca, a sua mulher, com qual tinha uma filha. Ele nunca negou o (hoje) feminicídio, porém alegava que assim havia agido porque era traído (disse a professora Mariza Correa, num belíssimo livro por si escrito (“Morte em família”) que a simples suspeita servia para que a esposa fosse morta e por vezes essa mesma suspeita servia de base aos jurados para absolver o acusado. Ele foi condenado e batalhei em segunda e terceira instâncias ao menos para abrandar-lhe a pena, infrutiferamente.
      Depois de muito tempo, com as festas natalinas se aproximando, fui cumprir um plantão no Juizado Especial Cível (nos acompanhávamos as audiências que envolviam litigantes sem condições de pagar um profissional. Como não havia necessidade de que eu ali permanecesse, já estava me retirando quando fui abordado por uma pessoa que me chamou pelo nome. Olhei-a mas não a reconheci e prontamente disse a ela, ao que ela respondeu: “sou o João Batista, lembra?”.
      Conseguindo lembrar, perguntei: “aquele que matou a mulher a facadas na rua Culto à Ciência”? A resposta foi afirmativa. Curioso, perguntei o que ele estava fazendo ali no fórum, mais especificamente no Juizado Especial Cível. Ele contou que trabalhava com semi-jóias que o seu negócio estava indo de vento em popa: queria mostrar algumas, já que na pasta que portava havia um mostruário, mas, alegando qualquer desculpa que hoje não lembro, desinteressei-me. Mas o motivo que o levava ali era que um freguês havia comprado uma razoável quantidade de peças e não havia honrado o pagamento, ou seja, dera um “calote”.
      Pela forma civilizada escolhida para fazer a cobrança – as vias judiciais – e não as agressivas, com uma faca, por exemplo, percebi que a pena que cumpriu uma das suas finalidades, qual seja, a reeducação. Ao lhe dizer que estava indo para a PAJ, que ficava a dois quarteirões do Palácio da Justiça, ele me acompanhou e ali fez algumas vendas para as funcionárias, com o pagamento parcelado. Em tom de chiste informei-as que ele era viúvo, porém não contei o motivo da morte da mulher.


[1] . Há texto publicado neste blog contando a história: O nome do apóstolo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...