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O cantor, a menor de idade e o defloramento


 

    
     Na trilha da polêmica criada por uma exposição e uma performance envolvendo um homem “nu em pelo”, veio à tona uma, por assim dizer, “aventura” de um cantor/compositor baiano que, aos 40 anos, deflorou uma adolescente de 13 anos. O evento carnal, segundo a envolvida, aconteceu durante a festa de comemoração dos 40 anos dele. Ela declarou isso em entrevista à revista Playboy no ano de 1998.
     Tão veio a público a notícia, aplicaram-lhe alguns títulos nada honrosos, dentre os quais o de “pedófilo”. Este provocou a ira do compositor/cantor, que processou por danos morais (ah! sempre os danos morais; sempre alguém querendo “faturar algum” como reparação por ter sido ofendido [ou ter se sentido assim]) os que o “ofenderam”.
     Vale a pena gastar alguns minutos (e também palavras) para entender se teria sido cometido àquela época algum crime por parte do varão. Mas, em primeiro lugar, é bom que se esclareça que não existe nenhum crime, no ordenamento jurídico-penal brasileiro, chamado pedofilia. Esse foi um nome inventado pela mídia, nesse inútil trabalho de inventar nomes para os delitos. Sabe-se que cada crime tem, na lei, ao lado da descrição em que consiste, um nome que o caracteriza. Por exemplo, assim ocorre com o homicídio (artigo 121 do Código Penal), furto (artigo 155) e estelionato (artigo 171), e muitos outros. Quando o ilícito penal envolve sexo praticado com ou sobre um menor apressadamente pensa-se na palavra pedofilia.
     Se em 1998 a desvirginada tinha 29 anos (conforme ela mesma declarou na entrevista) e era o ano de 1998, ela nasceu em 1969 e foi desvirginada aos 13, o evento carnal deu-se no ano de 1982. Neste ano, aquele que praticasse conjunção carnal (também denominado “coito vagínico”) com pessoa (mulher, óbvio) menor de 14 anos cometia o crime de estupro com violência presumida. O crime de estupro era definido assim (artigo 213): “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”; a pena cominada era de 3 a 8 anos de reclusão. Ou seja: era necessário que houvesse o emprego de violência (física) ou grave ameaça (violência moral) e o coito vagínico, não sendo necessário, porém, que o estuprador atingisse o orgasmo.
     Outro artigo, este nas disposições gerais, o de número 224, letra “a”, dispunha que a violência era presumida se a vítima “não fosse maior de 14 anos”. Vale dizer: a conjunção carnal mantida com mulher não maior de 14 anos presumia-se que houvesse sido empregada violência. Mesmo que a adolescente tivesse concordado com o ato sexual (e até gostado, como parece ser o caso em questão), talvez até pedido, sua anuência de nada valia, respondendo por esse grave crime contra a liberdade sexual (assim era, na época, classificado).
     Mas há um senão: nesses crimes somente se procedia mediante queixa[1], ou seja, a ação penal tinha que ser promovida (no prazo de 6 meses) pelos representantes da menor, que, a tanto, precisavam contratar um advogado para que a propusesse em juízo. Caso os responsáveis não pudessem arcar com as despesas judiciais, a ação penal convertia-se de privada exclusiva em pública mediante representação: bastava aos responsáveis apresentarem uma representação (uma manifestação de vontade) ao Promotor de Justiça, ao Delegado de Polícia ou até mesmo ao Juiz de Direito demonstrando claramente que pretendiam a punição do (suposto) autor (ou pelo menos que ele fosse criminalmente processado). O prazo para apresentar essa declaração de vontade é de 6 meses a partir do (conhecimento) do fato. Nada disso foi feito.
     De qualquer forma, o fato aconteceu no ano de 1982: em 6 meses ocorreu a decadência do direito de queixa ou de representação e o prazo prescricional era de 12 anos, prazo esse vencido em 1996.
     Pois é: sob a ótica da lei penal vigente àquela época manter conjunção carnal com mulher menor de 14 anos ea crime de estupro com violência presumida.
    


[1] . Não confundir isto com a comunicação do crime que se faz à polícia e o vulgo chama de “queixa”.

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