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Coronavírus e Direito Penal




              O Código Penal brasileiro define, no Capítulo III – da periclitação da vida e da saúde -, do Título I da Parte Especial – Crimes contra a Pessoa - no artigo 131, o crime de “perigo de contágio de moléstia grave”: “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que sabe que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”, com a pena cominada de reclusão, de um a quatro anos.
              Em primeiro lugar, deve ficar claro que se trata, conforme classificação da doutrina, de “norma penal em branco”: ela mesma não define o que seja “doença grave” transmissível por contágio. Essa norma, na visão de um antigo doutrinador, é “corpo à procura de alma”, e a alma está em outra norma seja, lei, seja portaria. No Brasil, essa classificação é dada pelo Ministério da Justiça, por intermédio de ato administrativo, uma portaria.
            O crime, como até um leigo pode constatar, é doloso, numa forma de dolo que a doutrina antiga chamava de “dolo específico”, o que se vê na expressão “com o fim de”, ou seja, o ato praticado pelo sujeito ativo deve ser apto a transmitir o contágio. Não existe sob a forma culposa, ou seja, se o ato de contágio for praticado por imprudência, negligência ou imperícia, não constituirá crime. Seria desnecessário dizer que o sujeito ativo deve ter plena consciência de que está contaminado.
           Importante ainda ressaltar que a doença grave deve ser transmissível por contágio, pois, como se sabe, existem doenças graves – gravíssimas até – que não são transmissíveis nem por contato, nem por outra forma, como, por exemplo, o câncer. A portaria vigente do Ministério da Saúde (n° 204, de 2016) nada fala a respeito desse vírus por conta do ano em que foi editada, porém, no item 12, há uma doença de notificação compulsória com os seguintes dizeres: “doenças com suspeita de disseminação”.
         Em outro artigo, desta vez no Título VII - dos crimes contra a a incolumidade pública -,  capítulo III - dos crimes contra a saúde pública -, há o artigo 268, com os seguinte dizeres: "infringir determinação do poder público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa", cuja pena é de detenção, de um mês a um ano, e multa. Este crime também é doloso, mas não com dolo "específico", e, ao contrário do outro, não atinge apenas uma pessoa e sim um número indeterminado de pessoas.  Neste artigo será muito mais fácil enquadrar muitas condutas, a dos rebeldes e desobedientes.

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