Houve
um tempo não tão distante quanto possa parecer em que a tortura era largamente
empregada para a solução de delitos. Numa época era francamente permitida, fazendo
parte do aparato repressivo estatal.
Numa
obra memorável, um nobre italiano, de nome Cesare Bonesana, escreveu um “pequeno
grande livro” (como alhures alguém apelidou) que era um virulento libelo contra
o emprego da tortura pelo Estado (e contra muitas outras coisas, como, por
exemplo, os julgamentos secretos). Era o ano de 1.764 e ele contava 26 anos de idade. O autor do livro notabilizou-se como Marquês
de Beccaria e o que mais, a princípio, chamou a atenção sobre o opúsculo, além
de seu conteúdo, foi ter sido escrito por alguém que supostamente deveria estar
gozando os prazeres da ociosidade da nobreza e não escrevendo uma obra que desgostaria os
detentores do poder. O livro chama-se “Dos delitos e das penas” e durante muito
tempo era de leitura obrigatória nas faculdades de Direito. Hoje, não sei.É provável que muitos formandos sequer tenham ouvido o nove do "livrinho".
No
Brasil, o emprego da tortura para a obtenção de prova da prática de crime perde-se
nas ondas do tempo e dizem alguns conhecedores que ela somente passou a ser objeto
de mais atenção quando começou a ser empregada durante o período do regime
militar, utilizada contra presos “políticos”: é que estes tinham uma situação
cultural e financeira melhor dos que os marginais pés-de-chinelo que formavam o
grosso da clientela do sistema punitivo. Verdadeira ou não a tese, é importante
registrar que a “constituição cidadã” (como carinhosamente a chamava o deputado
federal Ulysses Guimarães) trouxe no artigo 5°(direitos e garantias
fundamentais), inciso XLIII, que a tortura seria um crime inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia. Não havia, porém, uma lei descrevendo qual
conduta deveria ser considerada o crime de tortura, o que somente ocorreu oito
anos após com o advento da lei n° 9.455, de 7 de abril de 1977.
Há
um livro que retrata algumas facetas do emprego da tortura durante o regime
militar: “Brasil: nunca mais”. Contém a obra uma relação de agentes públicos
torturadores. E a Comissão da Verdade procurou apurar hipóteses desse crime
durante o regime militar (não era crime, porém, naquela época, pois a lei
criminalizadora é de 1997). Dessa época é o exemplo mais conhecido da devastação que a tortura pode produzir, chegando inclusive à morte: Wladimir Herzog.
Antes
de começar a advogar, durante o tempo em que trabalhei como cartorário numa
vara criminal, era possível ver presos sendo trazidos para interrogatório
ostentando as marcas visíveis da violência empregada para obter uma confissão
(vista esta como “a rainha das provas”). Lembro o sobrenome de um: Caiola. Era
fora surpreendido com partes de carros furtados e foi seviciado para confessar
quantos furtos houvera cometido. E naquela época pouco ou nada adiantava que ficasse
provado que a confissão fora obtido mediante tortura: dizia a jurisprudência
que o torturador deveria ser punido, porém a prova era válida. Hoje, facilmente
se reconheceria a ilicitude da prova em virtude da forma como ela foi obtida. Tive
a oportunidade de atender, já como Procurador do Estado, uma pessoa que
afirmava haver sido torturada para confessar a sua participação num “assalto” a
uma agência bancária do bairro Cambuí: eram recentes e muito visíveis as
queimaduras feitas com brasa de cigarro principalmente na virilha.
Há
quem defenda o emprego da tortura e disso há uma boa resenha no livro “O bom
uso da tortura”, do inglês Michel Terestchenko. Alguns países de primeiro mundo
ainda a empregam em alguns casos específicos; no terceiro mundo incontável é o
número de países em que o seu emprego existe. Que ela continuará a existir não
há dúvida, embora seja um dos maiores ataques contra a dignidade da pessoa
humana.
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