Pular para o conteúdo principal

A corrupção


 
   
         No Direito Penal brasileiro e desde tempos imemoriais a corrupção é considerada crime. Há duas espécies de corrupção: a passiva e a ativa. A primeira, que está descrita no artigo 317 do Código Penal, ocorre quando o funcionário público “solicita ou recebe, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”; a pena é de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa (esta pode ser de 10 a 360 dias-multa, no valor cada um de 1/30 do salário mínimo até 5 vezes esse salário). Portanto, quem pratica a infração é o funcionário público. Já a ativa, que está descrita no artigo 333, consiste em “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determina-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”, com a pena de reclusão, de 2 a 12 anos, mais multa. Aqui, o sujeito ativo é o particular que corrompe ou tenta corromper o agente público.
            Comparando-se os dois artigos em questão constata-se uma disparidade: ao passo que o funcionário público que “solicita ou recebe”, ou “aceita promessa”, sempre de vantagem indevida, fica sujeito a uma pena máxima de 4 anos – o que lhe daria direito desde logo a cumprir a pena em regime aberto desde o início -, o particular que corrompe ou tenta corromper fica sujeito a uma pena privativa de liberdade no máximo de 12 anos. É mais grave a conduta de um funcionário público que “achaca” o particular ou do particular que “compra” ou tenta “comprar” o ato funcional? Na melhor das hipóteses, a pena máxima cominada à corrupção passiva deveria ser mais alta.
            Os livros de Direito Penal brasileiros contém algumas preciosidades quando se estuda o tema em questão e uma delas é a seguinte: e os pequenos agrados com que o particular, agradecido pelo atendimento prestado pelo funcionário público, presenteia o agente público, podem ser considerados corrupção? Há mais de cinquenta anos, Nelson Hungria (que presidiu a comissão que elaborou o Código Penal) afirmava que esses pequenos regalos não poderiam se constituir em crime de corrupção. Exemplificava: os mimos dados aos carteiros no fim do ano, bem como aos lixeiros (se bem que hoje esta atividade seja praticada por empresas particulares contratadas pelo poder público). Porém, o sumo mestre de Pisa, Francesco Carrara, advertia no século XIX que nesse tema deveria aplicar-se aquela máxima: “temo os gregos, ainda que tragam presentes”. Para ele, presente ao funcionário era como o cavalo de Tróia: um presente de grego.
            Num livro interessante, chamado “Sociologia da corrupção”, composto de vários artigos, alguns escritos por juristas, outros, como o próprio nome designa, por sociólogos, há uma defesa da corrupção, ou pelo menos, que não seja considerada crime, pois, segundo o seu autor, as quantias movimentadas pela corrupção circulam entre as pessoas, mudando de mãos e fazendo a riqueza trafegar. O autor de um dos artigos, um brilhante advogado criminalista carioca (Antônio Evaristo de Moraes Filho), foi, tempos depois, defensor de Fernando Collor de Mello quando este foi processado eplo crime de corrupção passiva perante o Supremo Tribunal Federal (o ex-presidente foi absolvido e a vantagem indevida por ele recebia foi um carro Fiat Elba). Sem chegar a tanto, o jusfilósofo Miguel Reale apontava que o crime tem um lado positivo, qual seja, fazer com que norma, ao ser aplicada, se reforce, agigantando-se.
            Como se disse recentemente, a corrupção é uma “velha senhora” (só faltou dizer que era respeitável), numa alusão que ela não foi criada ontem. É verdade. Como política de Estado, porém ela tem, digamos, uns 13 anos, quando, com a implantação do “mensalão”, ela passou a ser encarada como política pública. Ela precisava ser praticada para que os objetivos governamentais lícitos fossem atingidos: esta era uma das teses ventiladas pelos detentores do poder ou quem falava por eles. Os “corpos” dos atingidos pela dura mão da justiça no episódio do “mensalão” mal tinham adquirido o ‘rigor mortis” e já surgia a ponta de outro iceberg, o ‘petrolão”, e aqui não se tratou de arrecadar dinheiro sujo para objetivos limpos, mas sim para enriquecer alguns e com as sobras pagar dívidas de campanha a fim de se eternizar no poder. Ou vice-versa.
            Tudo isso enquanto “dormia, a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações”, como sabiamente disse o petista Chico Buarque de Hollanda na célebre música “Vai passar”.
            É um ato de prestidigitação – em vulgar, mágica – apresentar um projeto de “endurecimento” da lei penal para que os crimes parem de ser praticados (ou diminuam): já que um dos lemas (mentirosos) do atual governo é “pátria educadora”, que tal educar os brasileiros, desde a mais tenra idade, ensinando-os que o funcionário público não pode aceitar nada além de seu salário?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...