Ele
teve uma infância difícil, morando, juntamente com sua família, num “cortiço” na
avenida Barão de Itapura, bem próximo à linha do trem da Mogiana. Nas várias
vezes diárias em que o trem por ali passava as porteiras eram fechada,
interrompendo o tráfego. Depois, a sua família mudou-se para o bairro Vila
Nova, nas proximidades da igreja. Numa ocorrência até agora para mim
inexplicável, um seu irmão foi morto por um soldado da (então) Força Pública;
parece que o projétil atingiu a sua perna e ele entrou num matagal, ali
falecendo.
Durante
o fim de sua adolescência e no início da idade adulta ele começou a lavar os
automóveis das pessoas do bairro em que eu morava em troca de (hoje) dez ou
vinte reais; vários moradores “utilizavam” os seus serviços. Além do pagamento,
alguns lhe davam roupas usadas – camisas e calças – e sapatos. Eu mesmo fiz
isso algumas vezes. Por essa época ele, afastado da família, morava de favor
num quarto de fundo de uma oficina mecânica localizada na rua Dr. Melchert,
Vila Nova.
De
repente, parou de vir. Como esses “sumiços” eram mais ou menos habituais,
ninguém se alarmou, mas, com o passar do tempo, começou a despertar preocupação.
Um dos moradores descobriu que ele estava preso no “cadeião” do bairro São
Bernardo. Tão logo eu soube da ocorrência, fui ao presídio conversar com ele.
Eu ainda não era Procurador do Estado,
porém prestava ali serviço voluntário como
advogado, dando assistência aos presos “carentes”. Por conta dessa
condição, em vez dele ser trazido ao parlatório (que nem parlatório era),
entrei na ala das celas (chamadas “xadrezes”), dirigindo-me àquela em que ele
estava. O “xadrez” estava apinhado de presos e num local em que cabiam oito,
estavam vinte. Tão logo me viu, implorou que o tirasse dali. Perguntei se ele
tinha tido alguma ocorrência policial e ele respondeu que, muito tempo antes, um carro fora furtado
da oficina e ele fora chamado ao 4° Distrito Policial para ser ouvido. Isso não
era o suficiente para um aprisionamento.
Fui
ao fórum e pedi uma busca em seu nome (muito comum, aliás, com muitos
homônimos) e encontrei um processo que tramitara pela 1ª Vara Criminal. Ele
fora acusado de ter participado do furto por ter aberto o portão da oficina em
que morava ao ladrão – morador daquele bairro e seu conhecido e conhecido
também dos proprietários da oficina -, que se evadiu com o veículo, capotando-o
na rodovia Campinas-Mogi Mirim. Voltei ao presídio e narrei isso; ele me contou
que o ladrão, de apelido “Mineiro”, havia levado ao local uma garrafa de pinga,
embriagando-o, e depois perguntou se algum dos carros dali tinha as chaves,
pois ele queria dar “uma volta”. Embriagado, e iludido, ele cedeu a chave e
abriu o portão, tendo, por tal, sido acusado de furto.
Ele
tinha sido ouvido na fase de inquérito e foi processado pela participação na
subtração, mas não foi encontrado pelo oficial de justiça. Condenado à pena
mínima, 1 ano de reclusão, sendo concedida a suspensão condicional da execução
da pena (“sursis”), mas, mais uma vez, ele não encontrado para ser intimado
dessa audiência, não tendo, portando, comparecido. A suspensão foi revogada e
determinada a expedição de mandado de prisão.
Fiz
uma petição explicando ao juiz toda essa situação, pedindo o restabelecimento
da suspensão, pleito imediatamente deferido, e, realizada a audiência, ele foi
posto em liberdade. Em seguida, recorri ao (então) Tribunal de Alçada Criminal,
obtendo a sua absolvição.
Onde
entram os sapatos? Quando estive no presídio para conversar com
ele, ele calçava um par de sapatos que eu lhe dera.
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