Era
uma modorrenta tarde de sábado; mais precisamente, anoitecia. Ali no início da
rua Paula Bueno, ele, um egresso do sistema carcerário, onde entrara e saíra
por algumas vezes, sempre debaixo da mesma acusação: crime contra o patrimônio.
Ele perambulou por ali, examinando as modestas casas para ver se alguma estava
vazia. Bingo: escolhida uma, ele pulou o muro baixo (naquele tempo as casas
ainda tinham muros baixos, sem nada de grade ponta de lança ou cerca
eletrificada), foi ao quintal e iniciou o arrombamento da porta da cozinha.
Porém,
desde o momento em que ele se encontrava em atos de cogitação (a execução do
crime compõe-se de cogitação [impunível], preparação [em geral, impunível] e execução,
podendo atingir a consumação foi estacar-se na tentativa), ele não sabia, mas
estava sendo observado por uma moradora da casa em frente (naquele local, há
uma bifurcação, em que as ruas são separadas por um pequeno jardim), cuja casa
fica num plano mais alto: da varanda dessa residência a atenta (e curiosa)
moradora assistia a todos os movimentos do ladrão.
Tão logo ele invadiu o local, a moradora
acionou a Polícia Militar que enviou uma viatura e os milicianos detiveram o
por assim dizer e imitando Chico Buarque, “meliante”, levando-o ao Plantão
Policial, onde foi lavrado o auto de prisão em flagrante e o detido foi
encaminhado ao (então) Cadeião do São Bernardo. Foi denunciado por furto
qualificado tentado e teve o início o processo. O primeiro ato judicial naquele
tempo era o interrogatório do acusado, oportunidade em que ele declinava o nome
de seu defensor. Eu ainda não era Procurador do Estado, porém, como prestara
serviços voluntários naquele estabelecimento carcerário por uma entidade
chamada PAR – Patronato de Ajuda ao Reeducando -, o réu indicou meu nome como o
de seu defensor.
Apresentei
a (então) defesa prévia e o segundo ato judicial consistia numa audiência em
que eram ouvidas as testemunhas de acusação. As arroladas pelo Promotor de
Justiça foram, claro, a moradora e os dois policiais militares que efetuaram a
prisão. Enquanto ela era ouvida, observei que ela usava óculos com grossas
lentes, chamadas de “fundo de garrafa”, e após descrever o que vira (como está
descrito acima), perguntei a ela se padecia de algum problema de visão. Ela
prontamente respondeu afirmativamente: miopia. Indo além, sem que eu lhe
perguntasse nada, completou:
-
A semana passada eu consultei o oftalmologista e o grau de miopia aumentou.
Em
seguida, sacou da bolsa a receita, pretendendo mostra-la ao magistrado, que,
educadamente, recusou.
Os
policiais relataram que surpreenderam o acusado no quintal da casa, próximo à
porta da cozinha, que já se encontrava avariada.
Debalde
na minha alegação final pugnei pela absolvição do acusado, principalmente
fazendo alusão à dificuldade da principal testemunhal (quase “presencial”): o
juiz foi insensível ao argumento, condenando o acusado como violador do crime
de furto qualificado tentado, impondo-lhe 8 meses de reclusão.
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