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A maconha como remédio





      Alguém já afirmou que a melhor (talvez única) vantagem de envelhecer é ser testemunha das invenções e das mudanças sociais. É o uso da maconha é sem dúvida uma grande mudança, social, talvez a maior (excetuando-se, claro, os golpes de Estado).
      Quando a minha família veio de mudança para Campinas, no longínquo ano de 1964, já estavam ocorrendo algumas mudanças, se bem que em outro campo dos acontecimentos. The Beatles estavam começando a ser tocados e ouvidos no Brasil – I wanna hold your hand “estourava” -; Roberto Carlos estava parando na contra mão e dando surgimento ao movimento denominado “Jovem Guarda” (em termos artísticos, um dos melhores acontecimentos sem dúvida). E a maconha começava a “dar as caras”. Moramos durante umas semanas na casa em que moravam os meus avós maternos, na Rua Duque de Caxias, 818, defronte à Praça Sylvia Simões Magro (também conhecido por Largo São Benedito) e era muito comum presenciar rapazes consumindo a erva às escâncaras. Já era crime e havia repressão.
      Era, ainda, a época dos hippies, com o lema “paz e amor” – e muita droga, além dos cabelos compridos, alguns com barba, e todos vestindo roupas esquisitas.
      Veio o golpe militar e em Campinas, como um local com quartéis (três, no mínimo), arvoraram-se os militares em não somente combater os corruptos, mas, dizia-se à boca pequena, também os maconheiros. Afirmava-se que os “cabeludos” (a cabeleira longa era imediatamente associada ao consumo de maconha) eram presos, levados a um dos estabelecimentos militares. tinham os cabelos desbastados, além de uns dias em prisão. Não conheci ninguém que tivesse passado por essa agrura e, três anos depois (1967), sendo convocado para prestar o serviço militar, não soube de nenhuma prisão anterior – e durante o meu tempo de prestação nenhuma houve. De qualquer forma, como eu tinha cabelos compridos, à vista de um daqueles caminhões verde-oliva, punha-me ao largo.
      De qualquer forma, o consumo ou o porte de maconha – de qualquer substância entorpecente – era considerado crime. Na lei penal de 1971 não era feita, para efeito de punição, nenhuma distinção entre traficante e consumidor. Tal distinção passou a ser feita na lei penal de 1976, cominando pena privativa de liberdade alta ao traficante e menor punição ao usuário. Finalmente, veio a lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, em que ficou muito mais clara a distinção entre traficante e usuário. Para este, a pena prevista é, por exemplo, uma advertência sobre os efeitos da droga (artigo 28), ao passo que para o traficante (uma das figuras) é de 5 a 15 anos de reclusão, além de pesada multa (artigo 33). E já houve tentativa pura e simples de descriminalizar o uso da maconha, num projeto que provocou tanta gritaria que sequer foi apresentado.
      E agora, como está acontecendo em várias partes do mundo, o Brasil está pretendendo “legalizar” o uso da maconha. Ao contrário do que aconteceu no vizinho Uruguai, em que a produção e o consumo foram estatizados, e do que ocorre na Holanda, aqui o uso, como em alguns estados dos EUA, será estritamente medicinal, ou seja, o consumo continua vetado para quem quiser apenas “tirar uma onda”[1], e presentemente está sendo feita a regulamentação.
      Sou testemunha dessas mudanças – o que infelizmente significa que estou entrado em anos, naquela idade em que a idade é contada por décadas...
      (Estive em Amsterdã em 2009 e o consumo de maconha era feito abertamente: nas mesas de bares, nas calçadas, pessoas consumiam-na. Há, ainda, o museu da maconha e a venda de objetos aptos do consumo. Algumas fotos falarão por si.)


[1] . A maconha é uma substância, tal qual a cachaça, que tem incontáveis sinônimos para designa-la: erva, fumo, fuminho, marijuana são alguns. O uso também: tapa na pantera.

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