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De Rocha




    
        Ele não fazia jus ao apelido, foi o que pensei a primeira vez que o vi. Pensava que encontraria uma pessoa forte e sólida como uma rocha. Afinal, a acusação era de triplo homicídio qualificado e furto qualificado.
            Fui visitá-lo na cadeia do 2° Distrito Policial tão logo fui nomeado para defendê-lo. Ao ler o processo, e, mais especificamente, o seu interrogatório policial, em que ele confessou haver praticado, com outras pessoas, a morte daqueles três rapazes, mal entrados na maioridade penal, com 18 anos ou menos, prendeu-me a atenção um detalhe: como ele fugira do local.
            Era, por assim dizer, atividade de “justiceiro”, pois aqueles três rapazes eram acusados da prática de furtos em estabelecimentos comerciais no bairro em que moravam. O laudo do Instituto de Criminalística era impressionante, especialmente pelas fotografias que o ilustravam: uma delas mostrava os três rapazes mortos colocados sentados em uma cama no casebre em que moravam, postos de costas um para o outro, e amarrados; havia sangue para todos os lados. Detalhe: havia sido subtraído um aparelho de som de uma das vítimas.
            O detalhe em seu interrogatório policial que me chamou a atenção foi o seguinte: “De Rocha”, segundo disse ao Delegado de Polícia que presidiu o ato, havia fugido do local “de cavalinho” em um dos participantes daquela chacina. Fiquei com a curiosidade aguçada.
            Ele estava preso, por força de prisão preventiva, na cadeia do 2° Distrito Policial, que, naquela época, parecia um mercado persa: em razão da superlotação, as celas nem eram mais trancadas, ficando todos os presos no pátio, daí a semelhança com o mercado persa. Um dos presos indagou-me com quem eu queria falar. Anunciei o seu nome verdadeiro. O preso olhou para aquela turba e gritou: “De Rocha, advogado”. Do meio da multidão saiu uma pessoa usando duas muletas de braço, com dificuldade para caminhar. Foi nesse momento que não entendi o apelido, porém, imediatamente, entendi a fuga “de cavalinho”: a pressa em deixar o local fizera com que um dos participantes o levasse “de cavalinho”. Começamos a conversar. Indaguei se ele havia nascido com a deficiência; respondeu que não, que ficara assim em razão de um tiro que tomara. Notei que em sua cabeça havia falha de osso, típica de quem se submete a cirurgia cerebral e ainda não foi posta a placa de metal substitutiva do osso. Novamente acuado pela curiosidade, perguntei o que havia ocorrido; respondeu-me, novamente, que fora “um tiro”, disparado por seu irmão.
            Foi a julgamento pelos jurados de Campinas, tendo negado em plenário tanto a autoria dos três homicídios qualificados, quanto a do furto qualificado; porém, os jurados, levando em conta principalmente a confissão extrajudicial, condenaram-no pelos três homicídios, e o juiz lhe impôs a pena de 42 anos de reclusão. Quanto ao furto qualificado, que lhe valeria mais 2 anos de reclusão e multa, foram benevolentes: absolveram-no. Talvez como uma medida de consolação.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)

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