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O réu confesso.. e absolvido


 
            A lei de entorpecentes – nº 6.368/76 – punia o porte para uso próprio, conforme se deduzia da leitura do artigo 16, com a pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, mais multa. Representou essa norma um abrandamento em relação às anteriores[1], pois passou a fazer diferença entre traficante e usuário (ou portador para uso).
            A pessoa que fosse surpreendida portando entorpecente para o seu uso era encaminhada ao plantão policial e autuada em flagrante; como a pena privativa de liberdade prevista era a detenção, a autoridade policial podia fixar o valor da fiança. Apresentado o valor, a pessoa era solta.
            Esse era exatamente o quadro existente naquele processo que tramitava na 2ª Vara Criminal da comarca de Campinas cujo réu fui incumbido de defender na condição de Procurador do Estado. O acusado fora surpreendido com uma quantidade mínima de “maconha”, que em outra época poderia muito bem configurar o princípio da insignificância. Ou, mais posteriormente, a transação penal[2]. Ou, ainda mais posteriormente, uma simples advertência[3].
            A defesa começava a atuar somente após o interrogatório do réu: ao ler esta peça processual, notei que ele havia confessado estar portando a droga proibida, porém era uma confissão extremamente genérica, sem nenhum detalhe. Tal acontecera porque o Juiz de Direito não fizera as perguntas tendentes a esmiuçar a prática do fato. As testemunhas, óbvio, eram os policiais que o haviam surpreendido com o entorpecente, que, como é comum, pouco lembraram do fato.
            Ele foi condenado; inconformado, interpus o recurso de apelação e o fundamento que utilizei foi o de que a única prova existente era o seu interrogatório, porém, superficial, não podendo, assim, servir de suporte à condenação. Admito que não acreditava muito no sucesso do recurso: afinal, sempre houve muita “má vontade” quando o assunto é droga. Porém, para minha surpresa, a câmara criminal deu provimento para absolver o apelante (e condenado).
            Quando os autos voltaram do tribunal, fui ao cartório para ler o acórdão e, claro, fazer uma cópia. Lembrei do dinheiro que fora recolhido a título de fiança e estava depositado numa agência bancária do fórum, conta poupança. Requeri a sua devolução. O magistrado deferiu. Foi expedido o alvará de levantamento da quantia. O documento judicial estava à disposição do interessado. Enviei correspondência a ele. Compareceu um pouco desconfiado. Dei-lhe as boas notícias: absolvido e com dinheiro a receber. Exultou. Saiu. Depois de umas poucas horas retornou com um pacote e me entregou dizendo que era um presente. Surpreendi-me. A atitude era insólita. Abri-o: era uma gravata de crochê, muito em moda na época. Lembrei de Francesco Carrara e de Nelson Hungria: pequenos presentes não constituem material de corrupção passiva. Ele recebera o dinheiro, fora a uma loja muito boa próxima ao fórum e adquirira o presente. Isso se chama gratidão.


[1]. O artigo 281 do Código Penal criminalizava as condutas de igual forma; a lei posterior, nº 5.726/71, igualmente punia ambas as condutas e com as mesmas penas (de 1 a 6 anos de reclusão, multa de 50 a 100 vezes o maior salário mínimo vigente no país.
[2]. Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95).
[3]. Lei nº 11.343/06, artigo 28.

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