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Lula, o sítio de Atibaia e o interrogatório judicial



      Entre os incontáveis processos criminais contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está aquele que se refere a obras realizadas num sítio localizado na aprazível cidade de Atibaia. O ponto culminante do processo dá-se na audiência de instrução e julgamento, na qual são (habitualmente)[1] ouvidas as testemunhas de acusação, em seguida as de defesa e, finalmente, o réu é interrogado.
      Alguns autores antigos assinalavam que o interrogatório do acusado está para o processo como o coração está para o corpo humano. É nesse ato processual – o interrogatório – que o acusado exerce o direito de autodefesa, narrando (como se dizia, “de viva voz”) a sua versão dos fatos, negando tê-los praticado, ou admitir tê-los praticado, podendo, inclusive, permanecer em silêncio, sem que esta última posição possa prejudica-lo. Houve tempo no processo criminal em que se aplicava o ditado popular “quem cala, consente”.
      O interrogatório de Lula mostrou-se como um dos acontecimentos mais bizarros da História do Brasil, por conta de algumas ocorrências.
      Na primeira delas, o acusado tentou inverter os papéis e começar a interrogar a magistrada que presidia o ato, o que lhe valeu uma dura advertência (não é a minha vez de falar? não, é a vez do senhor responder as perguntas que eu fizer).
      Na segunda delas, ele disse que não sabia do que estava sendo acusado, tendo a juíza indagado se ele não se sentia preparado para o ato judicial (o interrogatório) e se não estivesse, a audiência seria suspensa para que ele se entrevistasse com o advogado. Apenas para esclarecer, o réu sempre sabe do que ele é acusado, visto que à validade do processo é necessário que ele receba cópia da acusação (cópia da denúncia). Ademais, uma elementar regra de advocacia criminal, em cumprimento ao que dizem a Constituição e o Código de Processo Penal, faz com que os defensores reúnam-se com o réu antes da audiência cientificando-o, se for o caso, mais uma vez, da acusação, bem como informa-lo de como a audiência transcorrerá, nos termos da lei (como dito linhas acima).
      Insistindo em seu despreparo para a audiência, o Procurador da República aconselhou-o a valer-se dos préstimos da Defensoria Pública (talvez ele fosse melhor assessorado...).
      Outro momento bizarro – o maior de todos – deu-se quando ele disse, em tom de pergunta, se o sítio era dele. Não está em discussão nesse processo a propriedade do sítio (e nem poderia, já que se trata de processo crime...). Sabe-se à exaustão que não é dele. O que se discute nesses autos é se ele foi o beneficiário das obras realizadas na propriedade imobiliária. Ele é acusado de, ainda quando era presidente da República, ter recebido vantagem indevida consistente nas reformas feitas no sítio de outrem mas em seu benefício. Esse é o crime de corrupção passiva, que vem definido no artigo 317 do Código Penal: “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Discute a doutrina penal a natureza dessa vantagem, se ela deve ser econômica. Sim, desde que o que foi recebido possa ser traduzido em pecúnia, o que se deu no episódio "sub judice": foi gasto quase um milhão de reais na reforma do sítio, adaptando-o ao gosto de Lula e de Marisa Letícia. Será que os seus defensores não explicaram isso a ele? Ademais, essa é apenas uma das acusações: a outra é de lavagem de dinheiro.
      Pois é: com a realização da audiência, encerrou-se a instrução probatória, e, pelo que foi visto até agora, só falta calcular a pena...


[1] . Nessa audiência devem ser ouvidos o ofendido (vítima), os peritos, feitas as acareações e os reconhecimentos.

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