Pular para o conteúdo principal

"Judite"


Ocorreu no final da década de 90, na cidade de Campinas, um fato – foi mais de um, na verdade – que a mídia local, sempre ávida para colocar epítetos em acontecimentos, chamou de “a noite do massacre nos motéis”. Foram praticados roubos em dois motéis e mortas algumas pessoas durante a sua realização. Na fuga, os latrocidas praticaram mais um roubo, desta vez contra os ocupantes de um veículo, matando mais pessoas.
                        As investigações efetuadas pela Polícia Civil, especialmente pelo 4° Distrito Policial, circunscrição a que pertenciam os locais onde se deram os fatos, concluíram que um policial militar de prenome Jaime havia participado das ocorrências. Ele foi delatado aos investigadores de polícia por um dos partícipes das empreitadas delituosas e, curiosamente, quando de sua prisão, calçava as botas de uma das vítimas, conforme o delator havia descrito. Teve a sua prisão temporária decretada[1].  
                        Além desse processo[2], o policial militar respondia a outros, em Campinas e outras comarcas próximas. Num deles, apurava-se a morte de um jovem da cidade de Sumaré, que fora apanhado numa praça dessa localidade por algumas pessoas, dentre os quais uma moça e o policial militar, levado a um local chamado “Três Pontes”, depois do distrito de Sousas, e ali executado com muitos disparos de arma de fogo; alguns projéteis atingiram-lhe o rosto. As evidências eram de que todos se conheciam e o jovem havia feito algum tipo de indiscrição à polícia. Ele estava, na noite em foi apanhado, na companhia de algumas pessoas, foi chamado por ocupantes de um carro, entrou no veículo, que era seguido por outro, tudo sem que fosse empregado qualquer tipo de violência ou ameaça.
                        Dos cinco réus, quatro livraram-se de alguma forma; um foi impronunciado, outro foi despronunciado e assim por diante até que chegou o dia do julgamento do policial militar (o processo fora desmembrado em relação aos demais). A defesa seria feita por um colega e como era a primeira atuação dele no tribunal do júri de Campinas, acompanhei-o. Antes que se iniciasse a sessão de julgamento, os policiais militares que escoltavam o acusado (a esta altura já expulso da Polícia Militar) disseram: “doutor, ele não pode ser absolvido; é muito perigoso”. Respondi: “vamos fazer o nosso trabalho, defendendo-o”.
                        Encerrados os debates (a tese foi de negativa de autoria), fomos todos à sala secreta e, para nossa surpresa, os jurados absolveram-no por quatro votos a três.
                        Imediatamente, fui à cela do primeiro andar do fórum, onde ficam os presos, para comunicar-lhe o resultado, o que o deixou muito contente, embora sem comemoração; para satisfazer uma curiosidade que me corroia fazia tempo acerca do seu apelido, perguntei-lhe: “por que o teu apelido é Judite”; como resposta, ele disse, em tom desgostoso, quase truculento: “desconheço”.
                        Melhor não insistir, foi o que pensei. E desisti de saber a origem do apelido.  





[1] . Antes dele, um vigilante particular, de quem se suspeitava, teve também decretada a prisão temporária; esteve preso por aproximadamente 60 dias até que os verdadeiros autores foram descobertos. Essa vítima de erro judiciário requereu ao estado de São Paulo uma indenização, sendo que tal pedido pode ser feito administrativamente.
[2] . Embora fossem várias mortes, o processo era único, em razão daquilo que se chama conexão – forma de determinação da competência prevista no Código de Processo Penal.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante