Pular para o conteúdo principal

O projeto do CP e a barganha

A ação penal divide-se em pública e privada; a primeira subdivide-se em incondicionada e condicionada (à representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça); a privada, em exclusiva e subsidiária da pública. Sem pretender esmiuçar essa divisão, quase todos os crimes são de ação penal pública - esta é a regra, que, aliás, está escrita no artigo 100 do Código Penal ("a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido").
Num sistema punitivo como o brasileiro, em que prevalece a ação penal pública, sendo raros os crimes em que é exigida a representação do ofendido, e mais raros ainda os crimes de ação penal privada, a vítima (ou sujeito passivo ou ofendido) tem pouca ou nenhuma voz na solução do litígio: no crime de ação penal pública incondicionada, o Ministério Público pode iniciá-la ainda que contra a vontade da vítima, nada podendo detê-la depois de iniciada, somente terminando com uma decisão judicial, que pode ser condenatória ou absolutória (podendo, ainda, haver a extinção da punibilidade - se ocorrer a prescrição, por exemplo). Não ter voz significa dizer que a vítima não poderá interferir no sentido de que o sujeito ativo não seja punido - "perdoando-o", por exemplo. Mas se ela quiser tentar piorar a situação do ofensor poderá fazê-lo, habilitando-se como assistente do Ministério Público (artigo 268 do Código de Processo Penal).
Essa, por assim dizer, severidade foi abrandada com a lei nº 9.099/95, que introduziu a transação penal para as infrações penais de menor potencial ofensivo (punidas somente com multa ou com pena privativa de liberdade não superior a 2 anos) e a suspensão condicional do processo para as infrações penais de médio potencial ofensivo (pena mínima igual ou inferior a 1 ano). 
Inovando grandemente nesse campo, o projeto de Código Penal traz um título na Parte Geral denominado "da barganha e da colaboração com a justiça".
O "nomen juris" é, em negrito, barganha, e o artigo 105 descreve o que é:
Art. 105. Recebida definitivamente a denúncia ou a queixa, o advogado ou defensor público de um lado, e o Ministério Público ou o querelante responsável pela causa, de outro, no exercício da autonomia de suas vontades, poderão celebrar acordo para a aplicação imediata das penas, antes da audiência de instrução e julgamento.
§ 1º São requisitos de acordo de que trata o caput deste artigo:
I - a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória;
II - o requerimento de que a pena de prisão seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º a 4º deste artigo;
III - a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas.
§ 2º Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena de prisão nos termos do artigo 61 deste Código;
§ 3º Fica vedado o regime inicial fechado.
§ 4º Mediante requerimento das partes, a pena prevista no § 1º poderá ser diminuída em até 1/3 (um terço) do mínimo previsto na cominação legal.
A propósito: o artigo 61 mencionado é o que prevê a substituição da pena de prisão pela restritiva de direitos.
Trata-se, como se vê, de uma ampliação do alcance da transação penal, atingindo qualquer infração penal e não somente as de menor potencial ofensivo.
Ademais, guarda semelhança com o "plea bargaining" do direito estadunidense, com menor alcance, evidentemente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...