Pular para o conteúdo principal

A morte do irmão




  
        Seu nome era Paulo e ele descendia de japoneses. Conheci-o quando fui prestar assistência jurídica aos presos do “cadeião” do São Bernardo, após uma rebelião que foi reprimida à custa de muito sangue. Devido ao seu estudo, ele trabalhava naquilo que na linguagem de cadeia é chamada “carceragem”: presos que são utilizados no trabalho burocrático. Esses presos fazem a identificação de novos presos, redação de certos memorandos e similares.
          Ele e seu irmão resolveram uma sexta-feira praticar um roubo de um carro nas imediações de uma feira-livre que é montada na Rua General Marcondes Salgado, bem próximo ao Bosque dos Jequitibás.
          Fizeram como todos sempre fazem: perambulando nas imediações, até que surja uma pessoa mais desatenta, que é abordada quando está abrindo a porta do carro. No caso, foi uma mulher, que, com as compras efetuadas, preparava-se para abrir seu automóvel.
          Deu-se a abordagem: imobilizada a vítima e desapossada da chave, Paulo já se aboletava no banco do motorista, quando um feirante, que a tudo assistia e, pior, conhecia os dois, saiu correndo em direção a eles, gritando para que parassem. Paulo sacou a arma e atirou contra o feirante. Nesse exato momento, seu irmão – e cúmplice naquele roubo – entrava no veículo pela porta do passageiro: recebeu o projétil na cabeça. Morreu praticamente na hora. Paulo foi preso. Processado pela prática do crime de latrocínio (artigo 157, parágrafo 3°, 2ª parte, do Código Penal), foi condenado, tendo recebido a pena de 15 anos de reclusão: era a pena mínima cominada ao crime; depois o Código Penal foi modificado, pela lei dos crimes hediondos, e a pena mínima aumentada; hoje, é de 20 anos.
          Embora não tenha matado nem a pessoa proprietária do veículo, nem a que pretendeu impedir o roubo, e sim a pessoa que o auxiliava, o Código Penal considera que ele consumou o latrocínio, tendo peso definitivo na solução a sua intenção: a sua intenção era matar um homem, e isso ele fez (Francesco Carrara, nesse ponto, dizia: “a pessoa quis matar um homem e matou um homem”).
          Durante quase 2 anos convivi com Paulo no interior do “cadeião”: era uma pessoa extremamente afável, de fácil convivência, sempre atento a tudo e disposto a ajudar.
          Não consegui compreender o ato que o havia praticado.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Mllennium.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante