Pular para o conteúdo principal

Bianca e a mudança de sexo


   
    O seu nome não era Bianca: “na pia batismal” (na verdade: no registro de pessoas naturais) recebera o nome de Edilson, do sexo – claro! – masculino. Porém, era, conforme se dizia na época, transexual, “uma alma feminina encarcerada num corpo masculino”. A sua ideia, que encerraria a realização de um sonho, era submeter-se a uma cirurgia para mudança de sexo (hoje: cirurgia de readequação sexual). Foi em busca dos meios à realização do sonho.
      No Brasil houvera, na década de 70, uma experiência pioneira nessa área: um transexual chamado Waldir fora operado para mudança de sexo. A cirurgia foi realizada por um renomado profissional de São Paulo e de tal forma ficou satisfeito o cliente que resolveu requerer à Vara (sem nenhuma conotação...) dos Registros Públicos a alteração de seu nome, de Waldir para Waldirene, e a mudança de sexo, de masculino para feminino. Requerida a alteração, o Ministério Público que atuava perante aquela repartição judiciária não somente discordou do pedido como entendeu que houvera crime, o de lesão corporal grave (na classificação doutrinária: gravíssima): artigo 129, § 2°, inciso III (perda ou inutilização de membro, sentido ou função – não fora a perda do membro viril, afinal extirpado, mas sim a perda da função de reprodução). Não obstante tivesse o cliente concordado com a intervenção médica, a integridade corporal é um bem indisponível, o que torna inválida qualquer concordância.
      Por ter entendido que houvera crime, e de ação penal pública (a punição do suposto autor independe da vontade da vítima), o Promotor de Justiça requisitou à Polícia Civil a instauração de inquérito, o que foi feito. O médico foi processado, contratou uma equipe dos melhores advogados (dentre os quais Heleno Cláudio Fragoso, autor do livro [entre outros] “Lições de Direito Penal”), mas foi condenado, tendo sido imposta a pena de 2 anos de reclusão (era – é ainda – a pena mínima prevista ao crime), com a suspensão condicional da execução da pena. Inconformadas, as partes, réu e Ministério Público, recorreram e o (então) Tribunal de Alçada Criminal, por dois votos a um, absolveu o médico por entender que ele não houvera agido com dolo.
      O sonho acalentado por Bianca não teve um caminho tão tortuoso. Submetida inicialmente a uma avaliação multidisciplinar (ou multicientífica) numa universidade estadual, em que intervieram médicos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, foi elaborado um laudo que concluía pela necessidade da cirurgia. Porém, os cirurgiões, talvez conhecedores do caso anterior (Waldirene), único até então no Brasil, condicionaram a cirurgia a uma autorização judicial. E lá foi “ela” (até então “ele”) à Procuradoria do Estado à procura de um profissional que requeresse judicialmente a autorização. A colega a quem coube a atribuição digitou o pedido e ele foi distribuído à Vara do Júri da comarca de Campinas, cujo titular, em longa e erudita decisão, autorizou a intervenção cirúrgica.
      A cirurgia foi realizada e foi um sucesso; Edilson, seguindo na mesma trilha de Waldir, requereu, agora a outro juiz, óbvio, a alteração do registro civil, não apenas quanto ao sexo, mas também quanto ao nome: ele queria chamar-se Bianca Vitória, esta uma alusão ao sucesso da operação. Deu-se mal nos dois pedidos: ambos foram indeferidos. Porém, realizou o sonho de toda mulher: casou-se. O conúbio não durou muito tempo: o consorte morreu, “assassinado” que foi num “assalto”.
      Quando me contaram do passamento do esposo, ingenuamente pensei que tal se dera por excesso de prazer...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...