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Morto ao sair





    
      Não tenho clara lembrança do tempo em que aconteceu este episódio: não lembro se ele ocorreu quando eu, “pro bono”, prestava assistência jurídica aos presos do “cadeião” do São Bernardo, o que aconteceu nos anos de 1977 e 1978, ou quando, já como Procurador do Estado, no ano de 1983, fui designado, após uma sangrenta rebelião, para ali prestar assistência jurídica sem prejuízo das minhas atribuições normais, que se davam na área civil da Assistência Judiciária da Procuradoria Regional de Campinas.
          Mas o fato em si está bem vívido na minha memória. Ele era um daqueles presos esquecidos pelo sistema, cumprindo pena numa cadeia pública em que não havia assistência jurídica, numa cela com mais quinze outros (ou mais) desafortunados. Era muito simples, afável, conversava bem, era humilde e respeitador.
          Atendi-o certa ocasião e ele dizia que estava preso mais tempo do que a pena que lhe fora imposta. Que não via a hora de deixar o cárcere. Que – esta descrição era de emocionar – subindo num dos catres, ele, com algum esforço, conseguia enxergar a copa da mangueira que havia no quintal da casa que a sua família morava (e que morara até ser preso), pois a modesta moradia era ali mesmo no bairro do São Bernardo.
          Interessei-me pela sua história, principalmente pela parte em que ele relatava que estava preso mais tempo do que a pena determinava. Fui ao fórum, retirei o seu processo de execução. Havia vários apensos. Várias penas a cumprir. Li o cálculo de penas. Somei uma a uma. Alcancei a pena total. Ele tinha razão: a pena total que lhe fora imposta já estava cumprida. Ele estava preso indevidamente.
          Elaborei uma petição ao magistrado apontando as penas, a soma de cada uma, o total, o início do cumprimento, culminando por demonstrar que a reprimenda já havia sido cumprida e que, portanto, ele deveria ser solto. Atendendo ao meu pedido, o magistrado, depois de que o Ministério Público se manifestou favoravelmente ao meu pleito, determinou a expedição de alvará de soltura em favor do condenado pelo cumprimento da pena.
          Ele foi solto. A primeira providência ao sair foi ir à casa de um desafeto, com quem se desentendera no presídio, tomar satisfações. Deu-se mal. Ao tentar agredi-lo, o desafeto sacou de uma arma de fogo que portava e fez vários disparos, acertando-o e matando-o.
          Melhor teria sido permanecer preso: teria continuado vivo.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.) 


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