O estado de
necessidade está definido no Código Penal no artigo 24: “considera-se em estado
de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não
provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou
alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. O
fato praticado que preencher os requisitos dessa definição legal não é
considerado criminoso, pois o artigo 23 estabelece que “não há crime quando o
fato é praticado em estado de necessidade”.
Exemplos
clássicos de estado de necessidade são a tábua de salvação (“tabula unius
capax”): num naufrágio, dois náufragos lutam pela posse de uma tábua que
comporta apenas o peso de um (nos tempos modernos, em que os navios não são
mais construídos de madeira, poderia ser atualizado o exemplo: os náufragos
lutam, assim, pela posse de um colete salva-vidas ou de uma bóia); importante
salientar que nenhum deles deve ter sido o causador do naufrágio.
Outro clássico
exemplo: o furto famélico. Nesta hipótese, a pessoa subtrai algo de outrem para
comer. Porém, a fome deve ser tanta que ameace a própria vida de quem subtrai
(ou de um parente ou amigo ou, enfim, qualquer pessoa: está na definição legal
“direito próprio ou alheio”).
Foram esses os
pensamentos que eu tive quando li um processo da 1ª Vara Criminal em que iria
atuar na defesa dos dois rapazes: eles haviam furtado uma cabra.
Era perto do
Natal. Os rapazes, de pouca instrução, com as respectivas esposas e filhos,
tinham migrado do nordeste para Campinas, como fazem todos os anos milhares de
pessoas, em busca de uma situação melhor, que nem sempre é alcançada. Muitos
desistem e retornam ao local de origem; outros poucos conseguem a melhora que
pretendiam. De qualquer forma, o início é muito difícil para todos.
Eles estavam
vivendo uma situação de apertura (ou precisão, conforme diz o Ministro Nélson
Hungria): não tinham emprego e as mulheres não podiam trabalhar em razão dos
filhos pequenos.
Os dois
retornavam para casa depois de mais uma jornada inútil, quase sem esperança,
quando avistaram no quintal de uma casa uma cabra e a idéia veio imediatamente
(a ocasião faz o ladrão?): furtar aquele quadrúpede mamífero. E foi o que
fizeram. Correram para casa com o animal e rapidamente o abateram. Detalhe: a
cabra estava grávida (seria isso uma circunstância agravante? Naquele tempo não
era, nem para humanos como hoje é).
Mas não tiveram
sorte. O dono do infeliz animal, que estava no telhado da casa consertando a
antena, a tudo assistiu e imediatamente acionou a polícia que, como se viu,
chegou tarde (não por sua morosidade, mas pela rapidez com que os rapazes
agiram). Apanhados em flagrante, foram levados ao distrito policial, autuados e
presos.
A tese de
defesa não podia ser outra: estado de necessidade. Arrolei as mulheres como
testemunhas de defesa e elas disseram em juízo que chegaram ao ponto de esmolar
nas ruas da cidade para sobreviver. Mas o juiz (que hoje é desembargador e meu
vizinho) foi insensível aos apelos da defesa: não reconheceu o estado de
necessidade e, conseqüentemente, condenou ambos por furto qualificado pelo
concurso de pessoas[1]:
só não lembro se foi por crime consumado ou tentado, já que o objeto material
da subtração foi apreendido (sem vida, todavia).
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)
[1] . Artigo 155, parágrafo
4°, inciso IV, do Código Penal; pena: reclusão, de 2 a 8 anos, e multa.
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