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O botijão de gás e o martelo paraguaio




          Ela era universitária, de boa família; o pai era proprietário de uma empresa de ônibus de fretamento, na qual ela trabalhava. Ele, motorista da empresa do pai dela. Iniciaram um namoro; descoberto, em razão do desnível social entre ambos, foi imposto pelo pai dela que ela o encerrasse.
          Uma noite, ela não retornou para casa; a família ficou extremamente preocupada. No dia seguinte, no interior de um “fusca” estacionado próximo a uma lanchonete, foi encontrado o corpo de uma jovem, no banco de trás, envolto em um cobertor: o rosto desfigurado e inúmeros ferimentos sujos de algo negro, escuro (o que fez pensar que fosse carvão: os ferimentos teriam então sido provocados por um espeto, foi a primeira dedução) no lado esquerdo do peito, no local em que está o coração; era ela. Levado o corpo a necropsia, os peritos não conseguiram descobrir a origem dos ferimentos.
          O Setor de Homicídios da Delegacia Seccional de Polícia de Campinas concentrou as investigações no motorista e logo descobriu que fora ele: ele havia faltado ao trabalho no seguinte à morte dela, fato facilmente constatado examinando-se o cartão-ponto do suspeito. Levado à presença do Delegado, confessou com riqueza de detalhes; parecia um filme de horror.
          Encontrara-se e ela lhe disse que não poderiam mais namorar, por imposição familiar. Ele propôs que fossem à edícula em que ele morava. Foram. Ali, segundo relatou, ela estava deitada na sala, vendo televisão; ele, sorrateiramente, foi à cozinha, desatarraxou o botijão de gás e arremessou contra a cabeça dela (a cabeça estava apoiada numa almofada, o que impediu que o crânio fosse totalmente esmigalhado); nos estertores, ele apanhou um martelo paraguaio[1], sacou o cabo e desferiu-lhe vários golpes sobre o coração. Depois, enrolou o corpo num cobertor, colocou-o no banco traseiro do fusca (que era da vítima), dirigiu-se até outro bairro, onde o abandonou, atirando as chaves num terreno baldio. O martelo paraguaio ele, segundo disse, atirou-o num córrego.
          A família contratou-me para atuar como assistente de acusação. Minha primeira providência foi escarafunchar o passado do matador: ele havia sido condenado em comarca próxima de Campinas por lesão corporal praticada contra a mulher com quem fora casado. A segunda providência foi pedir que fosse comprado um martelo paraguaio, a fim de ser exibido aos jurados. Foi pedido um exame de sanidade mental, que apontou-o como semi-imputável[2], o que, em tese, faria com que a sua pena fosse diminuída entre um e dois terços; mas deveria ser indagado aos jurados se ele era semi-imputável, não bastando o laudo.
          Levado a julgamento, foi exibido aos jurados o botijão de gás, ainda com substância hemácia; o martelo paraguaio semelhante ao utilizado. Os jurados ficaram tão impressionados que o condenaram por unanimidade e também por esta contagem não reconheceram a semi-imputabilidade, o que impediu que a pena fosse diminuída.
          O juiz aplicou-lhe a pena de 25 anos de reclusão[3], a mais alta já registrada num caso de júri por uma morte na comarca de Campinas. A defesa interpôs um recurso chamado protesto por novo júri (abolido por uma reforma processual-penal de 2008), e, levado a novo julgamento, foi outra vez condenado, porém, a pena foi aplicada em grau menor: 18 anos.



[1] . Em todo coletivo há - ou havia - um martelo de madeira ou plástico para que o motorista examine os pneus; no martelo paraguaio, o cabo é extrátil, tornando-se um pontiagudo estilete.
[2] . Artigo 26, parágrafo único, do Código Penal.
[3] . A pena para o homicídio qualificado – foi essa a acusação – é de 12 a 30 anos de reclusão.

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