A mulher que me procurou naquela tarde modorrenta era mãe da vítima: esta fora estuprada e engravidara. O crime de estupro, no caso, tinha violência presumida, pois a vítima “não era maior de 14 anos”, conforme estabelecia o texto legal.
Eu mal sabia que fora
nomeado para atuar em defesa do acusado, pois em geral a minha atuação se dava
na Vara do Júri e o processo tramitava numa vara criminal comum. Também não
consegui, a princípio, compreender o motivo da mãe da vítima me procurar. Mas
aos poucos a situação foi se aclarando: o acusado era seu marido. O impacto foi
grande e assustador: o marido dela, portanto, pai da vítima (foi o que
naturalmente pensei), havia praticado o estupro e engravidado a vítima. Ele
seria, nessa ordem de ideias, pai e avô ao mesmo tempo.
Embora estivesse na
defesa do acusado, comecei a expor àquela mulher a solução legalmente possível
para minimizar os efeitos do delito contra (então) os costumes: provocar a
interrupção da gravidez. Com efeito, o Código Penal prevê que em casos de
estupro a gravidez pode ser interrompida, solução a que a doutrina dá o nome de
“aborto sentimental”[1].
A mãe da vítima não aceitou a minha ideia, dizendo que a gravidez chegaria a
termo. Fiquei estupefato com a resposta. É certo que a interrupção da gravidez
representa uma invasão ao organismo da mulher e, para complicar, naquele caso
se tratava de uma menina que na data do crime tinha menos de 14 anos. Porém,
claramente era um incesto. Não consegui convencê-la – ainda mais sendo ela a representante
legal da vítima, pois era a sua mãe – a interromper a gravidez.
Como a conversa
prosseguiu, acabei por descobrir que o sujeito ativo, a quem ela se referia
como “marido”, era, na verdade, seu companheiro e a filha – e “vítima” - era
fruto de um relacionamento anterior: o suposto estuprador era padrasto da
estuprada. Respirei aliviado. Não se tratava de incesto.
Fui ao cartório criminal
examinar os autos e constatei que o processo mal se iniciara. Porém, na fase de
inquérito, o acusado negara haver praticado o crime e a pequena vítima não o
apontava diretamente: como o fato tinha se passado n período noturno, ela não
conseguira ver o semblante do estuprador, referindo-se apenas, como dado
indicador, que ele usava botas (não as teria descalçado nem durante o crime?),
e o indiciado tinha o hábito de usar esse tipo de calçado. Ouvido pela
autoridade policial, ele não somente negara o fato como se propusera a
submeter-se a um “exame de DNA” (nas suas palavras). Esse meio de prova estava
ainda “engatinhando” no Brasil, mas não perdi tempo: logo requeri a sua
realização. Surgiu um óbice, porém: ele havia se mudado do endereço após ser
ouvido na polícia, o que era mais do que óbvio, e não pôde ser encontrado para
ser citado judicialmente; dessa forma, não seria igualmente encontrado para
fornecer material para a prova de DNA.
Infelizmente, cessou a
minha designação para atuar naquela vara criminal e retornei à Vara do Júri sem
saber o desfecho do caso.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos, volume II, a ser publicado.)
[1].
Artigo 128, inciso II, do Código Penal.
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