Pular para o conteúdo principal

O quase engano




          Quase defronte o prédio em que funcionava a AJ, na Rua Regente Feijó (entre a Barreto Leme e a Benjamin Constant), ficava todos os dias uma pessoa vendendo cartões de zona azul. Hábito, aliás, encontradiço em diversos pontos da cidade, pelo qual a pessoa amealha algum dinheiro até o final do dia.
          Havia um estuprador atuando naquela área central: esperava mulheres que trabalhavam em escritórios e repartições públicas, dominava-as e as levava, no próprio carro da vítima, até o local em que as estuprava. O seu local escolhido era em Aparecidinha.
          Uma de suas vítimas trabalhava no fórum e foi isso que quase ocasionou um grande engano. Para melhor investigar, foi elaborado um retrato falado do estuprador e cópias foram afixadas em vários prédios do centro, nas proximidades dos locais em que ele dominava as suas vítimas. Um dos exemplares, evidentemente, no saguão do fórum.
          Certa manhã, ao haver terminado o plantão de atendimento de público, procurou-me uma colega esbaforida perguntando se eu havia visto o retrato falado do estuprador afixado no saguão do fórum. Embora estivesse ali com frequência, não tinha visto ainda, respondi. Ela me pediu que fosse vê-lo: em tudo se assemelhava com aquela pessoa que vendia cartões de zona azul no quarteirão da AJ. Imediatamente, fui ao fórum para constatar e a semelhança era realmente assustadora.
          Voltei à AJ para conversar com a minha colega e ela indagou o que faríamos. “Não sei”, respondi. “O que você acha de telefonarmos ao disque-denúncia?”, ela perguntou. Sempre atento às sábias palavras de Beccaria a respeito de denúncia[1], ponderei que não deveríamos tomar atitude. E não tomamos.
          Tempos depois, o verdadeiro estuprador, que efetivamente tinha semelhanças com aquele pobre vendedor de cartões de zona azul, foi descoberto e preso.
          Fiquei pensando do erro que nos livramos e da injustiça que não cometemos.



[1] . “Aquele que suspeita que um seu concidadão é um delator, vê logo nele um inimigo”. O nome, aliás, deveria ser “disque-delação”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...