Pular para o conteúdo principal

Don Juan




     
       Um dos primeiros processos criminais em que atuei (não havia prestado concurso ainda) foi por indicação daquele de quem eu fui aluno e assistente na Faculdade de Direito, Álvaro Cury: ele fora procurado por uma pessoa que trabalhava na Replan, em Paulínia, e a acusação que pesava sobre ele era sedução: o ano era de 1976, talvez 1977. Por essa época, caso a pessoa (no caso, apenas o homem[1] – gênero masculino – podia ser sujeito ativo desse delito então classificado como “contra os costumes”) fosse condenada, o máximo em termos de benefício que ela poderia usufruir era a suspensão condicional da execução da pena (“sursis”).
            O atendimento foi feito no escritório de Álvaro Cury, na avenida Francisco Glicério, bem defronte ao largo da Catedral Metropolitana de Campinas. O réu compareceu munido de uma prancheta em que anotava todas as respostas que eram dadas. Foram estipulados os honorários. Ele aceitou. Assumi a sua defesa. Durante a instrução descobri que ele era investigado em um inquérito policial e pelo mesmo crime: sedução.
            Já por aqueles tempos havia uma ideia de descriminalizar a sedução, iniciada com a própria elaboração do Código Penal de 1940, pois no anterior (Código Penal da República, de 1890) o crime, que era chamado de “defloramento”, protegia a virgindade da mulher até os 21 anos, tendo essa idade sido rebaixada para 18 no código seguinte (1940). No Código Penal de 1969[2] (Decreto-lei nº 1.004), a proteção à mulher virgem ia até os 16 anos: era evidente o caminho em direção à “abolitio criminis”, ou seja, à descriminalização.
            Pois bem: no final da década de 70 já era difícil falar em sedução por conta de dois elementos normativos do tipo: a inexperiência e a justificável confiança (um deles precisava ocorrer juntamente com a virgindade da mulher e a conjunção carnal). Aqueles namoros efêmeros em que os envolvidos iam muito rapidamente à conjunção, na visão da doutrina e da jurisprudência não constituíam conteúdo desse crime e foi isso que argumentei na defesa desse meu novel cliente. Analisando a prova, o magistrado entendeu não estarem presentes os elementos do delito imputado ao “don juan” e o absolveu.
            Quanto ao inquérito pela prática de crime semelhante, não houve sequer denúncia: ele foi arquivado.
 (Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", volume II, a ser editado)


[1]. “Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze),  e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”, com pena de reclusão, de 2 a 4 anos. A conjunção carnal somente podia ser praticada entre um homem e uma mulher. Foi o artigo revogado pela Lei nº 11.106/05.
[2]. Este código teve o mais longo período de “vacatio legis” do Brasil: 8 anos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...