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A vontade da vítima



            A ação penal divide-se em pública e privada. A primeira subdivide-se em incondicionada e condicionada; a segunda, em exclusiva e subsidiária da pública. Quase todos os crimes são de ação penal pública incondicionada, ou seja, em quase todos esses crimes o processo pode (deve) ser iniciado independente da vontade a vítima. O sujeito passivo do delito não tem nenhum direito (oportunidade) de manifestar-se no sentido de dizer se quer ou não a punição da vítima. E no direito brasileiro são cada dia menos os crimes em que a vítima pode expor a sua vontade.
            Durante a minha atividade profissional como Procurador do Estado, atuando como defensor público, dois casos prenderam a minha atenção.
            Durante intervalo das aulas na faculdade de direito, fui à sala dos professores e ali me aguardava uma mulher, bem aparentada, que se apresentou como professora do Colégio Pio XII. Ele tinha ido falar comigo porque o seu filho, um adolescente, fora vítima de um crime de roubo: ele caminhava por uma rua do bairro Cambuí e numa praça, a Teotônio Vilela, conhecida por “centro de convivência”, no período da tarde, quando foi abordado por um jovem que, simulando estar armado, com a mão direita soba a camiseta, ameaçou-o e o fez entregar o par de tênis que calçava. Deu-se mal, porque passou pelo local uma viatura da Polícia Militar e ele foi preso: encaminhado ao 1º Distrito Policial, foi autuado em flagrante e encaminhado ao “cadeião” do bairro São Bernardo. A mãe da vítima, a professora, inconformada com a prisão do “assaltante”, foi ao fórum, descobriu a vara criminal em que tramitava o processo, descobriu o nome do defensor – no caso, eu – e foi à sua procura para dizer que ela não tinha interesse no prosseguimento do processo: para ela, era um absurdo uma pessoa de 19 anos (esta era a idade do ladrão) estar presa por causa de um par de tênis usado, que valeria, quando muito, 30 reais. Expliquei a ela que a titularidade era do Ministério Público e que, portanto, a vítima não tinha voz. Ainda inconformada, ela perguntou se eu não poderia pedir que ele fosse posto em liberdade. Respondi afirmativamente, porém advertindo-a de que em casos de prisão em flagrante pelo crime de roubo dificilmente os juízes concediam a liberdade provisória, mas eu faria, sim, o pedido.
            No outro caso, um pequeno lojista de roupas do bairro São Bernardo teve o prédio em que se localizava o seu comércio arrombado e furtadas algumas peças de roupa. Foi intimado a comparecer ao fórum para ser ouvido em declarações mas a audiência não se realizou porque faltaram duas testemunhas, os policiais que haviam investigado o caso. Designada nova data para meses adiante, novamente não se realizou porque o réu não foi intimado. Marcada nova data, o dono do comércio não se conteve e pediu para falar com o Juiz de Direito. Atendido, ele disse ao magistrado que não mais queria o andamento do processo pois a cada ida sua ao fórum ele tomava um prejuízo nas vendas, pois era obrigado a fechar a sua loja. Implorou praticamente o “arquivamento” do processo. Porém, o magistrado, paciente e pedagogicamente, explicou a ele que o “dono” da ação penal (e do processo, portanto) era o Promotor de Justiça e que, assim, a sua vontade não podia imperar.
            Pois é: o sistema punitivo brasileiro não dá oportunidade a que a vítima diga se pretende ou não a punição de seu algoz, salvo em alguns poucos crimes,

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