Ela tinha pouco mais de 18 anos e trabalhava como empregada doméstica num apartamento localizado na avenida Julio de Mesquita, Cambuí. Morava no local. A família para quem ela trabalhava era composta de pai, mãe e dois filhos, bem pequenos. O casal era muito católico.
Ela conheceu um
rapaz e iniciaram um namoro. Engravidou. O namorado desapareceu. Ela conseguiu
ocultar a gravidez dos patrões durante todo o tempo, até dar à luz, quando
ocorreu o fato que foi classificado como crime de infanticídio.
Um final de
semana, o casal foi participar de um retiro espiritual, com início na
sexta-feira e término no domingo. Ela ficou com as crianças. Nesse final de
semana, sentiu as contrações – e as dores também – do parto. Foi ao banheiro.
Deu à luz. Desesperada, asfixiou o recém-nascido[1].
Foi à cozinha. Apanhou uma faca. Retornou ao banheiro. Tentou desmembrar o
bebê. Não conseguiu. Pôs o corpo, com as marcas das tentativas de corte, num saco de plástico daqueles para
acondicionar lixo e o embrulho macabro foi colocado num armário.
O casal
retornou do retiro. No dia seguinte, a mulher sentiu um cheiro estranho, muito
forte. Começou a procurar. Encontrou o embrulho funesto. Chamou o marido. Ambos
chamaram o padre, que era o guia espiritual da família e que havia presidido o
retiro do final de semana. O religioso conversou com a moça. Ela relatou toda a
história. Foi instaurado inquérito policial. Remetido a juízo, ela foi
denunciada pelo crime de infanticídio. A esta altura, já tinha desaparecido:
deixara o emprego, voltando para sua terra natal, no nordeste.
Não encontrada
pessoalmente, foi citada por edital. Obviamente, não atendeu ao chamamento. A
defesa coube à AJ, por mim. Fui examinar os autos. O laudo necroscópico dizia
que fora examinado um “natimorto”. Exultei: crime impossível[2].
Na defesa prévia, arrolei o médico-legista que fizera a perícia, na qualidade
de perito executor, como testemunha de defesa. Esqueci da advertência do “sumo
mestre de Pisa”, Francesco Carrara: “os
peritos, fiéis sempre ao seu dever de dizer o que queira o acusador e de
encobrir com suposições sua própria ignorância, proclamaram que o fato era impossível...”[3].
Ao
ser ouvido em juízo, o perito disse que a expressão “natimorto” constante do
laudo era explicada pelo seguinte: como se tratava do corpo de um recém-nascido
que não fora registrado, a praxe era colocar natimorto, mas que a criança
houvera nascido, sim, com vida, o que pôde ser constatado pela perícia.
Indaguei quais as perícias que foram realizadas no “natimorto” e ele explicou
(as famosas docimasias), embora no laudo nada disso tenha sido registrado.
Não
pude utilizar a tese de crime impossível por apenas um motivo: a prescrição[4] extinguiu a punibilidade.
É que ela era menor de 21 anos, o que provoca a redução de metade do prazo
prescricional. O Estado perdeu o poder-dever de punir pelo decurso do tempo. Ela
não chegou a ser julgada pelos sete jurados.
[2] . Artigo 17 do Código
Penal: “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio, ou por
absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Não se
mata um morto; não se faz aborto em mulher que não está grávida.
[3] . O impossível referido
por Carrara não tem nada a ver com o “crime impossível” e sim com uma afirmação
dos peritos num caso em que ele trabalhou: os peritos disseram que era
impossível e Carrara demonstrou o contrário.
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