Pular para o conteúdo principal

A cabeça no ponto de ônibus


  
            Ao tomar conhecimento de que atuaria, óbvio que como defensor dativo oficial, na defesa de um daqueles réus, estremeci, logo imaginando que a minha tarefa seria hercúlea. Tratava-se, sim, de mais um homicídio, porém, seja pela motivação, seja pela forma de execução, fugia aos padrões dos processos em que até então eu atuara. E que tinham sido muitos.
            Segundo os indícios apontavam, a motivação do crime seria um barraco numa favela em Campinas, contudo, não esclareciam se o ilícito se dera em disputa da posse (ou propriedade?) do imóvel ou, então, uma perlenga pelos alugueis atrasados. Seja por qualquer motivo desses dois que fosse, o homicídio já tinha sido classificado como qualificado e pelo motivo torpe. Os, a esta altura, acusados, posto que já havia denúncia oferecida contra ambos, haviam tirado a vida da vítima no interior do barraco – móvel do delito – em que esta morava e cortaram a sua cabeça. Esta foi colocada no ponto de ônibus da linha que passava defronte ao local do crime e ali deixada certamente para mostrar o que acontecia com quem descumprisse as regras existentes naquela comunidade.
            As fotos feitas pelos peritos do Instituto de Criminalística (naqueles tempos chamado de “Instituto de Polícia Técnica”) eram tétricas e extremamente impressionantes: dentro do barraco, o corpo sem a cabeça, com uma roda de sangue no local onde estivera a cabeça; esta, no banco do ponto de ônibus e de olhos abertos. Antes de conseguir pensar na impressão que a exibição das fotos causaria no espírito dos jurados no dia do julgamento, pensei num filme impressionante de Roman Polanski, chamado “O inquilino”, em que há a seguinte indagação: “eu e minha cabeça ou eu e meu corpo”, como se perguntando: “onde está o eu”?
            Felizmente, mal eu havia apresentado a defesa prévia, a família do réu que eu defendia contratou um advogado, de forma que fiquei liberado de prosseguir na sua defesa. Foi um alívio.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante